Opinião

Jonas Rabinovitch

Jonas Rabinovitch

Na coluna 'No Planeta das Cidades', Jonas Rabinovitch reflete sobre o que aprendeu convivendo com o pior e o melhor da arquitetura, do urbanismo e das artes pelo mundo afora. Arquiteto urbanista, trabalhou por 30 anos em Nova York como Conselheiro Sênior da ONU para inovação e gestão pública e foi convidado para atuar em mais de 80 países. Antes disso, foi assessor de Jaime Lerner no planejamento de Curitiba (PR).

No Planeta das Cidades

Podemos separar o artista de sua obra?

05/02/2025 09:20
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Caravaggio - Narciso, apaixonado por si mesmo, 1599 | Imagem: Wikipedia.

O grande poeta libanês Khalil Gibran resumiu bem: “trabalho é amor feito visível”. Todos têm que trabalhar, seja pelo propósito ou apenas pelo contracheque.  Mas alguns se destacam em seu trabalho por terem talentos extraordinários e deixam obras que acabam fazendo parte do acervo da humanidade.  Isso é particularmente visível no mundo das artes. 
Cidades que deram ao mundo grandes talentos universais têm orgulho disso: Paris ostenta as obras de seus artistas em famosos museus, Málaga exalta Picasso, enquanto Milão faz o mesmo com Caravaggio.  Mas, ao glorificar uma obra de arte, sempre esbarramos na difícil questão: podemos separar o artista de sua arte?  Como explicar que obras divinas elevando o espírito humano foram frequentemente criadas por pessoas horríveis e abusivas?
Caravaggio (1571-1610) ficou famoso pela genialidade no uso de luz e sombra em suas telas, mas se transformou em um assassino foragido; Jackson Pollock (1912-1956), criador do expressionismo abstrato, era alcoólatra, tinha temperamento violento e morreu aos 44 dirigindo embriagado; o pintor impressionista Paul Gauguin (1848-1903) abandonou a esposa e cinco filhos em Paris e foi morar no Tahiti onde espalhou sífilis entre várias jovens nativas e chegou a ter uma filha com uma amante de 13 anos; o escritor Pablo Neruda (1904-1973) fez lindos versos de amor, mas era um incorrigível mulherengo, confessou ter abusado de uma mulher fragilizada e renegou a própria filha; Ernest Hemingway (1899-1961), brilhante escritor ganhador do Prêmio Nobel era machista, egoísta, egomaníaco, marido infiel, bebia e brigava demais, era filho ingrato e pai negligente.
Paul Gauguin - Mistérios do paraíso, 1897 | Fonte da imagem: Wikipedia
Paul Gauguin - Mistérios do paraíso, 1897 | Fonte da imagem: Wikipedia

Segundo os católicos, o representante de Deus na Terra é o Papa.  Em ocasiões formais ele abençoa os fiéis reunidos na imponente Praça de São Pedro, uma obra-prima do barroco italiano projetada pelo famoso arquiteto-escultor Gian Lorenzo Bernini (1598-1680). Bernini tinha um temperamento criativo e muito violento.  Mesmo casado, se apaixonou por Costanza Bonarelli, esposa de um de seus assistentes.  Depois de dois anos neste tórrido caso extraconjugal, Bernini suspeitou que Costanza o estaria traindo.  Foi espiar de manhã bem cedo a casa da amante e descobriu, surpreso, que ela se despedia do outro amante: Luigi Bernini, seu próprio irmão!  Bernini pegou uma barra de ferro e atacou o irmão, quebrando duas de suas costelas. Depois, seguindo a punição da época para mulheres adúlteras, Bernini ordenou a um servente que mutilasse o rosto de Costanza, sua musa.  Bernini só escapou da justiça por ser amigo próximo do influente representante de Deus na Terra na época, o Papa Alexandre VII.   
Praça de São Pedro, Vaticano, desenhada por Bernini em 1667 |  Fonte: Wikipedia
Praça de São Pedro, Vaticano, desenhada por Bernini em 1667 | Fonte: Wikipedia

Por alguma razão que eu não sei se Freud explica, parece haver na personalidade artística um forte elo entre narcisismo, egomania, paixão e misoginia.  Pablo Picasso (1881-1973) criou o cubismo, mas era profundamente narcisista, machista e misógino.  Ele resumiu seu pensamento sobre mulheres na frase: “Existem apenas dois tipos de mulheres: deusas e capachos”, transformando deusas em capachos em diferentes estágios de seus relacionamentos.
Pablo Picasso - mulher chorando, 1937, retratando Dora Maar | Fonte da imagem: Artrianon      
Pablo Picasso - mulher chorando, 1937, retratando Dora Maar | Fonte da imagem: Artrianon      

Isso não são apenas fofocas inconsequentes sobre a vida privada de grandes artistas.  Estou falando sobre a importância de se contextualizar a produção de cada obra, questionando profundamente o papel do artista na sociedade.  Na maioria das profissões, a personalidade do profissional não interessa muito, desde que o produto de seu trabalho seja bem aceito: um corte de cabelo, um par de óculos, uma dentadura, uma cesta de pães, uma consulta médica, um caso jurídico, etc. Mas estamos falando aqui de importantes narrativas sobre História da Arte, as quais refletem em grande parte a própria história da humanidade. 
Ao glorificar o artista apenas por sua obra, ignorando sua desumanidade, estamos, na verdade, usando o pretexto da genialidade para aceitar atos abusivos, desprezíveis ou até ilegais.  Mal comparando, é como se um jogador de futebol, ídolo de milhões de jovens, tivesse um comportamento criminoso.  As pessoas diriam: “Ele faz muitos gols, mas não presta como pessoa”. Isso não o transforma em um mau exemplo?     
Em um artigo publicado em fevereiro de 2022 no site Art UK, a crítica de arte Ruth Millington argumenta: “A história da arte tem o dever de expor os crimes dos criadores: precisamos reconhecer os maus-tratos de Picasso às mulheres, ou as ações assassinas de Caravaggio, para entender completamente o trabalho deles. Às vezes, é quase como se esses artistas estivessem se gabando de seus crimes em suas telas, que foram penduradas no centro do palco em galerias importantes ao redor do mundo”.
Há um movimento na Inglaterra pela remoção das esculturas de Eric Gill desde o final dos anos 1980, quando seus diários privados revelaram que ele havia abusado de suas duas filhas mais velhas e de seu cachorro de estimação, entre outras perversões.  Mesmo Eric Gill tendo falecido em 1940, até recentemente em 2022 sua gigantesca escultura na fachada da BBC no centro de Londres foi atacada a marteladas em protesto.  
Um homem ataca uma escultura de Eric Gill com um martelo em frente à BBC, Londres, 2022. | Fonte da imagem: BBC News
Um homem ataca uma escultura de Eric Gill com um martelo em frente à BBC, Londres, 2022. | Fonte da imagem: BBC News
Há outro aspecto importante: e quando o artista ainda está vivo? A advogada feminista e escritora australiana Lucia Osborne-Crowley escreveu um artigo em 2018 ressaltando a importância de se denunciar e até boicotar artistas que abusam de mulheres para promover sua arte ou para exercer poder.  Ela cita, entre outros, o escritor Junot Dias, ganhador do famoso Prêmio Pulitzer e o produtor cinematográfico Harvey Weinstein, julgado por 11 acusações de estupro e agressão sexual, tendo sido considerado culpado em três das sete acusações (quatro das 11 acusações iniciais foram retiradas) em dezembro de 2022. Algumas dessas mulheres são atrizes famosas: Angelina Jolie, Rosanna Arquette, Gwyneth Paltrow, MIra Sorvino.  
Assim como é obrigatório exibir uma frase confirmando que nenhum animal foi maltratado na produção de uma filmagem, Osborne-Crowley visualiza um aviso antes do filme: “Três mulheres foram permanentemente prejudicadas física e psicologicamente na produção deste filme”. Se isso acontecesse, a obra também ganharia uma dimensão de conscientização social e um certo ativismo embutido em sua própria criação. 
Pessoalmente, discordo dos excessos do politicamente correto “woke”, os quais afirmam que todo homem seria sexista e todo branco seria racista, mas concordo que o abuso de mulheres por homens poderosos deve ser denunciado.  Por exemplo, no Brasil a infeliz expressão “teste do sofá” parece ser uma prática comum de homens influentes no meio artístico obtendo favores sexuais de mulheres que se submetem a eles para tentar iniciar uma carreira artística. A carreira pode até ser “artística”, mas não vejo essa prática como arte.
"Nenhum animal foi ferido": Mensagem exibida em filmes nos EUA, uma campanha da American Humane Association (Sociedade Protetora dos Animais nos EUA) 
"Nenhum animal foi ferido": Mensagem exibida em filmes nos EUA, uma campanha da American Humane Association (Sociedade Protetora dos Animais nos EUA) 

Concluindo, temos que admitir que uma obra de arte representativa de sua época se torna uma importante página da História.  Essas obras são sempre admiradas em seu contexto histórico e social. Dizem que a quarta dimensão é o tempo: nossa apreciação artística só será completa quando incluirmos o artista como agente social em sua época.  Se separarmos o artista da obra teríamos um quadro parcial.  Uma análise abrangente de qualquer obra de arte e seu consequente registro histórico deveria, necessariamente, ser feita não em três, mas em quatro dimensões, ao longo do tempo.    
Ao aspirar à eternidade, a arte deveria ser vista não apenas como um objeto tridimensional, mas também como resultado do contexto histórico de sua criação e de todas as características, boas e más, do seu criador.