No planeta das cidades
Jonas Rabinovitch
Na coluna 'No Planeta das Cidades', Jonas Rabinovitch reflete sobre o que aprendeu convivendo com o pior e o melhor da arquitetura, do urbanismo e das artes pelo mundo afora. Arquiteto urbanista, trabalhou por 30 anos em Nova York como Conselheiro Sênior da ONU para inovação e gestão pública e foi convidado para atuar em mais de 80 países. Antes disso, foi assessor de Jaime Lerner no planejamento de Curitiba (PR).
No Planeta das Cidades
O pequeno grande museu de curiosidades arquitetônicas
Nunca liguei muito para selos, moedas, chaveiros, miniaturas. Coleciono museus. Eles têm as melhores coleções do mundo. Apesar de vivermos no país onde museus são destruídos por incêndios, tive o privilégio de conhecer excelentes museus no Brasil e pelo mundo afora. Tenho uma teoria: com o tempo, valiosos bens privados acabam sempre se tornando públicos – pelo menos nos países civilizados.
Grandes cidades do mundo se engrandecem com museus famosos. Paris tem o Louvre, Londres tem o Museu Britânico, Nova York tem o Metropolitan, Madrid tem o Prado, Florença tem a Galeria Uffizi, e assim por diante.
Por acaso, descobri a excelente coleção do menor museu público da Grã-Bretanha, localizado em Holborn, Londres, com entrada grátis. O museu, na verdade, é a antiga casa de Sir John Soane, possivelmente o arquiteto neoclássico mais famoso da Grã-Bretanha. Ele construiu o prédio do Banco da Inglaterra e foi um dedicado colecionador de pinturas, esculturas, modelos e fragmentos arquitetônicos, livros, desenhos e móveis do mundo inteiro – tendo literalmente transformado sua casa em um museu.
A casa em si já tem elementos inovadores para a época. Para compensar a densa arquitetura vitoriana, normalmente caracterizada por interiores escuros, John Soane criou um sistema de claraboias, janelas e espelhos. A sala de café, por exemplo, contém mais de 100 pequenos espelhos, uma claraboia multicolorida e janelas abrindo para um jardim interno.
Na sala de pinturas, além de valiosos quadros de Canaletto representando Veneza, há quatro curiosas telas de William Hogarth (1697-1764), um pintor que me fascina por sua verve satírica e narrativa surrealista. Hogarth pintou em 1755 o quadríptico “Humores de uma Eleição”. Ele criticou a corrupção eleitoral, a compra de votos, a criação de novos distritos eleitorais para dar cargos para gente influente, a hipocrisia de políticos que pregam o bem comum, mas agem em causa própria. Isso lembra algum país que a gente conhece?
No trabalho principal, chamado “Um Assento Parlamentar”, Hogarth satiriza a eleição de um membro do Parlamento. Um candidato vitorioso está sendo carregado pelas ruas numa cadeira, em cerimônia tradicional. Mas ele está desequilibrado e prestes a cair. Um de seus carregadores acaba de ser acidentalmente atingido na cabeça pelo bastão de um trabalhador que está lutando contra um apoiador de outro partido, um velho marinheiro com um urso. Dois jovens limpadores de chaminés urinam no urso. Um grupo de porcos assustados atravessa a cena. Ao fundo, uma turba revoltada carrega crânios humanos espetados em lanças, enquanto um banquete é servido aos ocupantes de um apartamento no segundo andar, assistindo a tudo e rindo tranquilamente das janelas.
Acho que Hogarth inventou o cartum moderno, só que em telas a óleo. Segundo o Museu do Cartum, também localizado em Londres, o primeiro cartum da História teria sido desenhado por John Leech em 1843 e publicado na revista “Punch”. O cartum se chama “Substância e Sombra”, mostrando uma galeria de arte com pinturas caras de gente nobre, ricamente emolduradas, enquanto os visitantes do museu são gente comum, pobre e malvestida. A crítica social é óbvia.
Os problemas retratados por Hogarth só começaram a ser resolvidos no Reino Unido com a Grande Reforma de 1832, modificando o sistema de representação política. Se a vida imita a arte, espero que as críticas de Hogarth cheguem um dia ao Brasil, o eterno país do futuro que teima em viver no passado.