Opinião
Instituto Jaime Lerner
Lentes positivas para pensar a cidade como solução pelo olhar do Instituto Jaime Lerner.
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Do semba ao samba
Angola e Brasil têm um passado comum e seus elos extrapolam a língua portuguesa | Arquivo pessoal
Angola conquistou sua independência em 1975, no entanto, passou os 30 anos seguintes em guerra-civil. Um dos mais longos conflitos da história moderna trouxe consequências devastadoras, como a destruição de estradas e cidades, escassez de habitações e ausência de planejamento urbano, já que a prioridade era a luta armada.
Com a paz e estabilidade política, após 2002, diversos programas de reconstrução nacional foram lançados no país africano. É neste contexto que fomos convidados a participar do desenvolvimento de projetos de habitação social, orientados pelo mantra inegociável desta prática profissional – viver é mais que morar. Foram propostos, portanto, bairros completos, não somente as moradias.
Neste momento em que as cidades angolanas se encontravam despovoadas e destruídas, partiu-se da ideia que esses novos bairros deveriam atuar como centralidades, de forma a abrigar todas as necessidades da vida urbana, como saúde, educação e lazer. É esse princípio que batiza o projeto: Comunidades Urbanas.
O Comunidades Urbanas propôs o desenho para 16 novas localidades, somando 45 mil moradias, cada qual abraçando diversas tipologias de habitações, comércio, equipamentos institucionais, mobilidade, além de áreas verdes e de lazer. Como resultado, as comunidades implantadas não só criaram destinos, como tornaram-se polos estruturantes para as regiões que sofriam as sequelas da guerra, incrementando o fluxo de pessoas e atividades econômicas.
Recentemente, estive em Angola em busca de compreender o pós-ocupação desse grande projeto do qual fiz parte. No entanto, para minha surpresa e alegria, em vez de fazer análises técnicas, me vi distraída e envolta pela vida cotidiana. Bairros populosos, vibrantes e bem cuidados, cheios de jovens estudando, divertindo-se, abrindo seus negócios, papeando, pessoas encantadoras.
Os elos que unem Angola ao Brasil são históricos e remontam a um passado comum que extrapola a língua portuguesa. De mesmo colonizador, do Atlântico Negro escravagista, da graça resultada dos idiomas bantus – o dengo, o cafuné, a farofa e a muvuca. O Semba, que se empresta às terras de cá para se tornar Samba e é sinônimo de festa, mas que em Kimbundu também significa “umbigo”.
Vivências e experiências são palcos por excelência para estudar e sentir o modo de ser dos povos, onde nascem os sonhos, crenças, pensamentos e o conjunto de valores intangíveis que explicam o seu mundo. Peço perdão pelo ufanismo, mas como diria Caetano “é que Narciso acha feio o que não é espelho”. E, se Angola não é reflexo da gente, a gente é de Angola.
Érika Poleto é arquiteta sênior da Jaime Lerner Arquitetos Associados e doutoranda na FAU-USP em Habitat.