Urbanismo
Horta comunitária e novo uso para espaços ociosos: o futuro das cidades está nas mãos de seus moradores
Foto: Reurb/Reprodução
O que você fez pela sua cidade hoje? A pergunta, que pode soar estranha para boa parte das pessoas, é carregada de simbolismo e tida como uma das chaves para a melhoria da qualidade de vida nos centros urbanos.
Em Curitiba, no Brasil e no mundo uma infinidade de iniciativas vem sendo realizadas em resposta a este questionamento. Tocadas por indivíduos, comunidades e empresários comprometidos em fazer de suas ruas, bairros e cidades um lugar melhor para se viver, elas representam, em maior ou menor escala, uma tendência do nosso tempo, na qual o engajamento e a vontade de mudar fazem com que os cidadãos abandonem sua posição passiva para atuar ativamente na transformação dos espaços urbanos.
“Hoje se acredita que, para a sustentabilidade de um projeto social [e urbano], é necessária a participação da população e do setor privado, o envolvimento das partes que irão vivenciar aquele espaço”, afirma o arquiteto e urbanista Victor Andrade, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenador do Laboratório de Mobilidade Sustentável (Labmob) da UFRJ. “Isso é algo inexorável. Pois, à medida em que as cidades crescem e as exigências sociais aumentam, é muito difícil o poder público fazer tudo sozinho”, completa o arquiteto do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc) Reginaldo Reinert.
Esta participação não tira a responsabilidade do poder público frente aos desafios e problemas enfrentados por suas cidades. Mas contribuiu para que ele possa ser mais assertivo em suas propostas e investimentos, para que vislumbre oportunidades para suas cidades e atue no sentido de conclamar a população a assumir o compromisso com a qualidade de vida do lugar onde as pessoas moram. Confira algumas iniciativas que estão em andamento e outras, nacionais e internacionais, que poderiam ajudar Curitiba a novamente ocupar seu espaço como exemplo de planejamento urbano.
Agentes urbanos
É este conceito que norteia o movimento Reação Urbana, por exemplo. Realizado por meio da parceria entre HAUS, da Gazeta do Povo e Reurb (Organização Social Civil de Interesse Público – Oscip), com o apoio da Agência Curitiba (órgão de fomento ligado à Prefeitura de Curitiba) desde o último mês de setembro, o movimento busca desenhar estratégias e definir um plano de ação para a reabilitação urbana da região do Vale do Pinhão, que compreende os bairros Prado Velho e Rebouças, em Curitiba.
Mais do que isso, a intenção é fazer da região uma espécie de laboratório no qual projetos voltados a diferentes áreas – social, econômica e cultural – e desenvolvidos pela tríade formada pela iniciativa popular, setor produtivo e prefeitura possam ser testados e aprimorados.
“O planejamento urbano que praticamos está em desuso na maior parte dos países desenvolvidos. O que se utiliza hoje são direcionamentos, um projeto com um caráter mais aberto, laboratorial, no qual se experimentam e avaliam [as ações]. Se deram certo, elas podem ser replicadas. Do contrário, não”, elucida o arquiteto Orlando Ribeiro, presidente da Reurb.
Entre as ações já realizadas pelo movimento estão o Primeiro Laboratório de Reação Urbana do Vale do Pinhão, que colocou moradores, comerciantes, acadêmicos, representantes da prefeitura e especialistas em urbanismo para trocar ideias e pensar a região. A partir dele, foi montado um calendário de ações para 2018, que incluem iniciativas de urbanismo tático, propondo a pintura, fechamento e novos usos pontuais de ruas e quadras dos bairros, um mutirão de limpeza do Rio Belém, entre outras ações de integração com a sociedade.
Por meio delas, o que se pretende é mobilizar a comunidade para fazer da região um exemplo de transformação urbana bem sucedida, da mesma forma como ocorre em outras cidades do Brasil e de diversas partes do mundo, nas quais iniciativas inovadoras, baseadas no engajamento social e nos novos usos de espaços antes desocupados e degradados, se tornaram referências práticas de que é possível mudar.
Um novo uso para um espaço vazio
O volume de imóveis vazios e terrenos baldios ou subutilizados é um dos principais problemas enfrentados pelas cidades. Só em Curitiba, são 73,3 milhões de m² nesta condição, quatro vezes mais do que os 17,5 milhões de m² de área verde da capital.
O que para os gestores públicos e vizinhança pode soar como um desafio se apresentou como oportunidade aos olhos das arquitetas Bárbara Becker e Vivian Brune. Moradoras da cidade, elas idealizaram o projeto “Vazio urbano”, que prevê a realização de atividades temporárias nestes terrenos.
“Eu estava na sacada da minha antiga casa, no Campo Comprido, quando olhei para o terreno vizinho, vazio, e pensei: faz dez anos que moro aqui e este terreno está assim. Ali foi o start”, conta Bárbara. “Então, começamos a pensar que poderíamos usar estes espaços para alguma atividade e, mais do que sugerir, queríamos provar que era possível”, completa.
Para isso, elas realizaram quatro intervenções: Cinema ao Ar Livre, Jardim Urbano, Galeria Aberta e Música ao Vivo, em quatro diferentes terrenos da cidade, entre dezembro de 2016 e abril de 2017. “As pessoas gostaram e o feedback foi muito positivo. Foi um processo sair da passividade de cidadão e descobrir que poderíamos fazer isso”, lembra Bárbara.
A intenção agora, segundo ela, é a de que o projeto ganhe escala. Para isso, as arquitetas têm buscado apoio junto à prefeitura e à Câmara dos Vereadores para formatar alguma contrapartida legal que incentive os proprietários dos terrenos e os transmitam segurança para participar da iniciativa.
Jardim suspenso
O desejo de ressignificar uma área por meio de novos usos, que norteia o projeto “Vazios Urbanos”, foi alcançado com êxito, e em maior escala, no desenho do High Line, em Nova Iork, nos Estados Unidos. Destacado por arquitetos e urbanistas mundo afora, o projeto nasceu da mobilização dos moradores, no final dos anos 1990, contra a demolição de uma linha de trem elevada construída cerca de 60 anos antes e desativada havia muitos anos.
Por meio do trabalho da ONG Friends of the High Line, o grupo convenceu o município de que o parque linear suspenso traria benefícios urbanísticos e econômicos para a região. Após a realização de concursos, que reuniram e selecionaram ideias para a área, o High Line teve suas obras iniciadas, sendo aberto ao público em 2009. Desde então, o parque de cerca de 2,5 Km de extensão e dez metros de altura, que corta três bairros, é um dos principais pontos turísticos e de convívio da cidade.
União por um bairro melhor
Há pouco mais de cinco anos, quem chegasse à comunidade Santa Inês, na zona leste de São Paulo, tinha a sujeira como anfitriã. O lixo e o entulho se espalhavam de tal forma que, à primeira vista, a impressão era a de que a empresa responsável por sua coleta não executava o serviço. “A empresa coletava, mas os moradores continuavam jogando lixo e entulho de forma desordenada e a qualquer hora do dia”, esclarece o líder comunitário Ionilton Gomes de Aragão, que há 35 anos morava no local.
Disposto a mudar este cenário, ele começou a conscientizar os moradores para que colocassem o lixo “para fora” nos dias e horários em que a coleta era realizada, e a cobrar da empresa e da prefeitura que este calendário fosse respeitado. Nascia ali o projeto Varre Vila.
O trabalho deu tão certo que fez com que Aragão e sua rede pleiteassem junto à Soma, empresa responsável pela limpeza da comunidade e parceira do projeto, a contratação de moradores locais. Além de realizar o trabalho de gari, eles disseminariam a conscientização sobre o lixo entre os vizinhos.
“Se você fizer sozinho, sem envolver a comunidade, corre o risco de em dois, três meses, estar tudo deteriorado. Agora, quando há pertencimento, envolvimento, as pessoas cuidam do lugar”, pontua Aragão. “O lixo esconde outros problemas da comunidade. Quando você cuida dele, ela passa a querer outras coisas”, completa.
E foi o que aconteceu na Vila Santa Inês. A partir do envolvimento dos moradores, a empresa reduziu seu custo de operação, devido à otimização da coleta, e reverteu a economia em melhorias para a comunidade, como a construção de praças e parques.
O projeto, então, ganhou escala, o que exigiu sua formalização. Hoje, é replicado com outros nomes em 11 comunidades, sendo oito em São Paulo e três em Maceió, sempre em parceria com as prefeituras e empresas responsáveis pela limpeza dessas localidades.
Horta comunitária
A união dos moradores também foi a chave para a transformação do bairro North End, em Detroit, nos Estados Unidos. Dispostos a deixar para trás a crise que abateu a região, eles transformaram uma área central ocupada por casas abandonadas e terrenos vazios em uma horta urbana de cerca de 30 mil m².
O projeto teve início com a eleição do prefeito Mike Duggan, em 2014, que tinha a revitalização da cidade, urgente após anos de crise financeira e más gestões, como um de seus objetivos de governo. Em conjunto com os moradores, ele desenvolveu a proposta da revitalização verde, que ganhou força com o apoio da The Michigan Urban Farming Initiative (Miufi), organização não-governamental da Universidade de Michigan.
Além da área de horta, onde são cultivadas mais de 300 variedades de vegetais, o projeto também contemplou a reforma de dois prédios, onde são realizadas atividades socioculturais. Exemplo de agricultura urbana mundo afora, a produção da horta abastece, gratuitamente, cerca de duas mil famílias do bairro, além de igrejas da região.
Gentileza urbana
Em uma escala muito menor, mas nem por isso menos representativa, a horta também foi a saída adotada pelo casal de arquitetos Clara Reynaldo e Lourenço Gimenes, de São Paulo, para transformar o seu entorno.
Ao constatarem o desperdício no potencial de uso do espaço da garagem da residência (de 13,5 m² e na qual era guardada apenas a moto de Lourenço, uma vez que o carro ficava estacionado na rua), eles decidiram cultivar nela ervas e verduras tanto para consumo próprio como também dos vizinhos e de quem mais passe pela rua.
“Tínhamos uma horta no segundo andar que morreu porque ficava longe da cozinha, que está na entrada da casa. Queríamos manter uma horta e eu me lembrei de um parque que visitei em Barcelona. Da alegria que sentia do cheiro de alecrim que vinha dele, e que ficou na minha memória. Daí veio a ideia de fazermos a horta aberta na garagem”, conta Clara.
Como o piso é feito de concreto vazado, bastou plantar as mudas nestes espaços. O acesso das pessoas às plantas é possível pelo fato de a casa não ter muros ou portões, pois o casal acredita que uma arquitetura segura é aquela permeável, sem barreiras.
Um ano após o início do cultivo, a horta já ganhou adeptos na vizinhança. Clara conta que as pessoas ficam surpresas e que algumas ainda param para perguntar se realmente podem pegar o que quiserem. “É um projeto de formiguinha que vai criando algo maior. Estamos dando um pouco mais de civilidade, de urbanidade [à rua]”, avalia a arquiteta.
Saem os carros, entra o pedestre
Pensamento parecido têm os sócios do Café Municipal, no Centro de Curitiba. Desde o último mês de março, eles “trocaram” duas vagas de estacionamento em frente ao café por uma “vaga viva”, como são chamadas as minipraças instaladas nos espaços antes destinados aos carros.
Pouco depois de a prefeitura regulamentar a instalação destes equipamentos públicos, os sócios investiram cerca de R$ 15 mil na estrutura, e outros cerca de R$ 800 mensais na manutenção da vaga viva do café que, além de servir de atrativo para os clientes, funciona como uma espécie de respiro para a cidade.
“Curitiba está carente deste tipo de estrutura. Hoje as pessoas atravessam a cidade em busca de um espaço ao ar livre para tomar um suco, um refrigerante. Isso fez com que ela fosse bem aceita, com que as pessoas se apropriassem dela”, destaca Vinícius Ribeiro Quintino, um dos sócios do estabelecimento.
Outra vaga viva, instalada pela prefeitura de Curitiba na Rua Riachuelo em parceria com a Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), não alcançou o mesmo êxito. Sem vigilância e manutenção periódica, degradou-se, tanto que foi retirada da rua, no último mês de novembro. “Como ela não teve a parceria com empresários, não havia quem cuidasse do bem e o mantivesse limpo”, lembra Quintino, ao comparar os dois modelos e destacar o papel da iniciativa privada em sua conservação.
Após a publicação desta reportagem, a vaga foi parcialmente destruída por um carro no último dia 13. Agora os proprietários avaliam se irão reconstruir o espaço.
Por uma cidade melhor
Todas essas e muitas outras iniciativas realizadas por indivíduos, empresas ou grupos de pessoas são muito positivas para melhorar a qualidade de vida nas cidades. Mais do que isso, os especialistas são praticamente unânimes ao afirmar que elas são cruciais para o desenho de cidade que se pretende para o futuro.
“São ações que não vêm em forma de protesto, mas sim de uma nova maneira de se ocupar e usar a cidade”, destaca o arquiteto Reginaldo Reinert, do Ippuc. E este uso não diz respeito somente à sua estrutura física, mas especialmente a interação entre as pessoas e delas com o espaço público. “Essa interação resulta em vitalidade. Quando você elenca os melhores lugares de uma cidade, eles têm a vitalidade, e não sua estrutura física, como característica comum”, acrescenta Orlando Ribeiro, presidente da Reurb.
O caminho para que isto ganhe escala e tenha seu poder de transformação e revitalização urbana potencializado, então, passa pela promoção do engajamento e pela valorização da interlocução entre os diferentes setores da sociedade.
“O grande desafio dos governos locais está em criar arenas de participação para que seja possível se identificar as demandas e se elaborar os projetos não definindo um uso final, mas criando espaço para a população decidir o que fazer com a sua cidade”, finaliza o arquiteto e professor da UFRJ Victor Andrade.