O chão consagrado e as migrações
Nos tempos antigos – ensina Fustel de Coulanges em “A Cidade Antiga” – as pessoas não se podiam afastar do local onde estavam enterrados os ancestrais. Acreditavam que a alma permanecia nas imediações do corpo, e requeria atenções dos vivos.
Quando gentes de procedências diversas se reuniam para começar uma nova cidade, traziam punhados de sua terra de origem – que eram depositados num mesmo local. Este tinha o significativo nome de “mundus”.
Acho esse simbolismo fascinante: aqui, o ser humano deixa de ser nômade, errante, aleatório. Da pertinência e apego ao lugar, nascem as qualidades cidadãs do homem: sua civilização, sua cultura, sua arte. O fenômeno da migração – e consequente abandono do chão consagrado – sempre existiu. A capacidade nutricional dos ambientes é limitada, isso estava aprendido desde a condição nômade. As concentrações e o surgimento das urbes só podem aumentar com a evolução agrícola e logística. Nesse sentido, o ambiente artificial, a arquitetura e as configurações urbanas, são itens maiores a considerar no sedentarismo. São fatores de pertencimento e, quem as perde, procura por novas: não há vida inteligente sem referências às quais se apegar.
Se aquele pitecamtropo safado não tivesse a brilhante ideia de migrar, hoje seríamos sete bilhões de simióides empilhados nas imediações do Transvaal, nos entredevorando, subnutridos e miseráveis, sem civilização alguma. E, a bem da verdade, o resto do planeta estaria muito feliz, por conta das demais espécies… É um tema interessante a ser explorado pela ficção científica, seja nos gibis, seja no cinema…
Talvez se deva associar a facilidade com que as pessoas migram na atualidade – movidas nem sempre por motivos prementes – ao laicismo preconizado pelo politicamente correto. Evidente, um fenômeno dessa envergadura nunca se explica por uma única causa; e mesmo no caso, causa e efeito são difíceis de discernir.
Acho que não há quem nunca tenha pensado em migrar: situações que parecem irreversíveis e que impactam não só a qualidade de vida; a tristeza da desesperança dos rumos da sociedade em que se vive; o descontrole dos problemas urbanos – criminalidade, droga, miséria, trânsito e desprestígio das coisas culturais.
Mas não são os mortos, quietinhos em seu chão, que nos prendem: são os vivos. São as relações de amizade, a paisagem dos lugares, as plantas que foram cuidadas e estimadas, os bichos de estimação, o pôr do sol em um horizonte ainda sem edifícios. É mais difícil abandoná-los do que ao chão dos cemitérios.