Arquitetura

“Passaram um trator sobre a história da nossa família”, desabafa herdeira de casa destruída pela prefeitura

Carolina Werneck*
26/07/2017 21:30
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Trator da Prefeitura derruba o que restou da Casa Erbo Stenzel depois do incêndio que queimou boa parte da estrutura, no último dia 14 de junho. Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo

“Passaram um trator em cima da história da nossa família.” O desabafo é de Cida Jabace Stenzel, uma das responsáveis pela doação da Casa Erbo Stenzel para a Prefeitura de Curitiba, em 1997. Para ela, a rápida demolição do que restou da centenária casa de madeira foi um desrespeito ao empenho da família em preservar o imóvel.
Originalmente localizada no São Francisco, a casa foi transferida para o Parque São Lourenço com dois objetivos. O primeiro era garantir a preservação de um dos exemplares de construção em madeira mais emblemáticos do Paraná. O segundo era que funcionasse como um espaço cultural. Mas, no último dia 14 de junho, um incêndio destruiu boa parte da casa. Em seguida, o prefeito de Curitiba, Rafael Greca (PMN) autorizou a demolição do que restou da estrutura, em ação que especialistas ouvidos por HAUS classificaram como precipitada. “A gente ficou muito triste, porque aquela casa era dos avós do meu marido. Nós a doamos para a prefeitura exatamente para que a história do Erbo não morresse, para que fosse preservada”, conta Cida.
Arquitetonicamente falando, a casa não se encaixa em nenhuma tipologia conhecida pelos almanaques. É única. Sua exclusividade reside no pé direito externo, que foi aumentado para facilitar a habitabilidade do sótão. E a construção se torna ainda mais especial por guardar histórias da família Stenzel, cujo seu membro mais ilustre foi o escultor Erbo Stenzel (1911-1980). (Foto: Fred Kendi / Gazeta do Povo)
Arquitetonicamente falando, a casa não se encaixa em nenhuma tipologia conhecida pelos almanaques. É única. Sua exclusividade reside no pé direito externo, que foi aumentado para facilitar a habitabilidade do sótão. E a construção se torna ainda mais especial por guardar histórias da família Stenzel, cujo seu membro mais ilustre foi o escultor Erbo Stenzel (1911-1980). (Foto: Fred Kendi / Gazeta do Povo)

Ação judicial

Depois da demolição, o Sindicato dos Arquitetos e Urbanistas do Paraná (SindARQ-PR) entrou com uma ação civil pública contra a Prefeitura e contra Greca por danos patrimoniais. Um dos trechos da contestação protocolada pela prefeitura junto à 4ª Vara da Fazenda Pública de Curitiba alega que a Casa Erbo Stenzel não era uma Unidade de Interesse de Preservação (UIP). Por isso, de acordo com a procuradoria do município, “inexiste na espécie bem de valor histórico passível de proteção pela via da Ação Civil Pública, razão pela qual deve ser indeferida a inicial”.
No entanto, ainda que o imóvel em questão não fosse oficialmente uma UIP, o documento de doação obtido com exclusividade por HAUS (veja foto abaixo) mostra que o município se comprometeu a zelar pela integridade da casa.
Nele, o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc) fica obrigado a fazer da casa um “espaço cultural, aberto ao público, de referência para a escultura do Paraná”. Outro trecho obriga o Ippuc a realizar vistorias técnicas à casa uma vez a cada três meses. “Essas foram exigências nossas. Foi para isso que a gente doou a casa ao município. Inclusive, tivemos muito prejuízo com a doação”, diz Cida. O prejuízo a que ela se refere é decorrente do Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU). Em Curitiba, terrenos que têm área construída pagam uma taxa mais baixa. Isso quer dizer que, depois que a casa foi retirada de sua localização original, os donos do terreno perderam esse desconto.
Documento registra a doação da Casa Stenzel para a Prefeitura e obriga o Ippuc a manter nela um centro cultural. Imagem: Reprodução
Documento registra a doação da Casa Stenzel para a Prefeitura e obriga o Ippuc a manter nela um centro cultural. Imagem: Reprodução
Embora esteja relacionada na lista nacional de museus mantida pelo Ministério da Cultura (Minc), a casa estava fechada ao público desde 2009. Na época, a Fundação Cultura de Curitiba (FCC), responsável pela manutenção do imóvel, alegou falta de orçamento para restaurá-lo. A família de Erbo Stenzel só ficou sabendo da suspensão das atividades do museu quando foi visitar o local. “Nós fomos levar conhecidos para visitar a casa e, quando chegamos lá, ela estava fechada. Não nos avisaram que o museu tinha parado de funcionar”, relata Cida. Como ficam  pouco em Curitiba, ela diz que os familiares ainda não decidiram se vão tomar medidas jurídicas contra o município, mas apoiam as iniciativas tomadas até aqui, por exemplo a do SindARQ-PR.
Questionada sobre o registro oficial do Ippuc obtido com exclusividade pela reportagem, a Prefeitura de Curitiba, por meio de nota, não teceu comentários sobre o teor do documento.

Laudo da Cosedi

Ainda de acordo com a defesa da Prefeitura, a Comissão de Segurança de Edificações e Imóveis (Cosedi) constatou que 70% da estrutura da Casa Stenzel havia sido consumida pelo fogo. Na ocasião do incêndio e posterior demolição, HAUS entrou em contato com o coordenador da Cosedi, Marcelo Solera. Ele informou à reportagem que, quando chegou ao Parque São Lourenço, onde o imóvel estava instalado, a demolição já estava sendo realizada. Essa mesma afirmação faz parte do parecer emitido pelo órgão.
A ordem para a demolição foi dada pelo Prefeito de Curitiba, Rafael Greca. Ele alegou que os laudos apontavam risco de desabamento. Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo
A ordem para a demolição foi dada pelo Prefeito de Curitiba, Rafael Greca. Ele alegou que os laudos apontavam risco de desabamento. Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo
Sobre esse ponto da contestação, a prefeitura afirma que “inexiste incoerência na argumentação, pois muito embora conste que já havia se iniciado a demolição, a Cosedi atestou a fragilidade da estrutura da edificação que não foi consumida pelo incêndio”. Ainda de acordo com a prefeitura, se o risco de desabamento não existisse a Cosedi poderia solicitar que a demolição fosse interrompida. Por fim, a nota enviada pela prefeitura afirma que a demolição não teve como base somente o laudo da Cosedi. O documento afirma que ela foi “amparada em dois outros laudos que, igualmente, haviam constatado a possibilidade de desabamento da estrutura. Tais laudos foram elaborados pelo Departamento de Parques e Praças da Secretaria Municipal do Meio Ambiente e pelo Instituto de Criminalística da Secretaria de Estado de Segurança Pública e Administração Penitenciária”.

Posicionamento da OAB-PR

A Comissão de Assuntos Culturais e Propriedade Intelectual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PR) diz ter nomeado duas relatoras para apurar o caso da demolição da Casa Stenzel. A medida foi tomada depois que a comissão recebeu um ofício da Associação dos Moradores e Amigos do São Lourenço (AMA São Lourenço). Nesse ofício, a associação afirma estar preocupada não apenas com a situação da Casa Stenzel, mas também com o abandono em que se encontra o Centro de Criatividade de Curitiba, que funciona no mesmo local. Por isso, a comissão pretender pedir alguns esclarecimentos à Prefeitura em relação aos dois assuntos.
Sobre a Casa Erbo Stenzel, a comissão quer saber quais foram as medidas administrativas para apurar as responsabilidades sobre o incêndio; quais são os documentos que fundamentam a autorização para a destruição  do imóvel e/ou ata da reunião e que deliberou pela demolição do imóvel; onde se encontram, os “restos” e/ou escombros da casa Erbo Stenzel para eventual e possível processo de restauração. Além desses pontos, há ainda solicitações para a apresentação de fotos e documentos do que restou do imóvel, dos “documentos originais, com a indicação dos responsáveis pelo ato e das motivações da decisão, bem como das deliberações tomadas, votadas e registradas com atas e livros respectivos” e do cronograma de restauro da casa e dos profissionais responsáveis pelo planejamento e execução de tal projeto.
Já sobre o Parque São Lourenço, os questionamentos são por que o Centro de Criatividade de Curitiba está aparentemente abandonado; quem são os responsáveis pela sua manutenção e funcionamento; quais os projetos que estão sendo desenvolvidos no Centro de Criatividade de Curitiba; quem são os responsáveis pela conservação e aplicação de recursos para o Centro de Criatividade de Curitiba e se os frequentadores do Centro sofrem e/ou podem sofrer algum risco de acidentes e outros, por conta da situação em que o local se encontra.

Defesa do prefeito

A ação movida pelo SindARQ individualizou a conduta de Greca para verificar eventual crime de improbidade administrativa. O prefeito se manifestou oficialmente sobre o processo nesta sexta-feira (28). Sua defesa sustenta a mesma argumentação já utilizada pela prefeitura, afirmando que o imóvel apresentava risco de desabamento e que, por isso, foi tomada a decisão de demoli-lo. Também afirma que a casa não era uma UIP e que, portanto, a lei de proteção ao patrimônio cultural de Curitiba não se aplica no caso da demolição. Os advogados dizem, ainda, que “embora a casa não fosse unidade de interesse de preservação, [o prefeito] ficou extremamente triste com o sinistro ocorrido, eis que é um defensor da memória de Curitiba“.
Ao longo da contestação, a defesa admite que Greca consentiu com a demolição da Casa Stenzel. De acordo com o documento, a decisão foi tomada devido ao risco de desabamento apontado pelo Corpo de Bombeiros e por uma perita da Polícia Civil que estavam no local. Também “por uma equipe técnica da Prefeitura, composta pelo Sr. Jean Brasil, Diretor do Parques e Praças, pelo Sr. Reinaldo Pilotto, Superintendente de Obras e Serviços, e pela Sra. Ana Cristina de Castro, Superintendente da Fundação Cultural de Curitiba”.
*Especial para a Gazeta do Povo.

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