Arte urbana
Arquitetura
“Elza Soares” deve colorir vazio deixado por “Jack Bobão”, apagado após nove anos
Empena cega do edifício Inter Walter Sprengel ganhou tom cinza para apagar mural do artista Eduardo Melo, o Artstenciva, que coloria o cenário desde 2013. | Gazeta do Povo
O cenário da região central de Curitiba ficou mais cinzento neste mês com o apagamento de um mural que havia se tornado parte do horizonte da cidade. A pintura tinha como fundo o padrão geométrico e icônico do chão acarpetado do Overlook Hotel, palco da trama de "O Iluminado". As formas em tons alaranjados davam destaque para um Jack Nicholson em preto e branco, ladeado pelos dizeres “Só trabalho sem diversão faz do Jack um bobão”.
O mural em homenagem ao clássico do cinema, dirigido por Stanley Kubrick, passou a estampar a cidade em 2013, quando foi pintado na empena cega do edifício Inter Walter Sprengel, na rua XV de Novembro, entre a Tibagi e a Conselheiro Laurindo. Nove anos depois, a arte de autoria de Eduardo Melo (o Artstenciva) e parte de um projeto maior, o Motion Layers, concebido por Celestino Dimas, foi escondida com demãos de tinta cinza por causa de recorrentes notificações da Secretaria de Urbanismo.
A retirada gerou reação de cidadãos nas redes sociais, com incontáveis reclamações e questionamentos que levaram o prefeito Rafael Greca a, pessoalmente, convidar o idealizador do projeto a pintar uma nova arte como uma espécie de "retratação à comunidade", nas palavras de Dimas.
Em conversa com HAUS, o artista avalia que a repercussão foi positiva por demonstrar o valor e a relevância da arte urbana e por movimentar a engrenagem pública, que, segundo ele, anda distante do grafite. "[Ficou] comprovado pela enésima vez o impacto positivo que a arte tem sobre a paisagem urbana e a própria autoestima da população. É muito saudável para o tecido social", frisou.
O objetivo agora é aproveitar o momento de visibilidade e transformá-lo em oportunidade para fomentar a cena. Dimas antecipou que as ideias já estão sendo traçadas. Aquela mesma parede lateral deve ganhar nova personagem, desta vez não fictícia, mas igualmente icônica: Elza Soares. A previsão é a de que a obra seja executada a partir de janeiro.
"É uma figura representativa, icônica, digna de uma homenagem. Tem a questão étnica, tem a questão de ser uma mulher, uma senhora idosa, a imagem dela carrega uma série de aspectos simbólicos muito interessantes. Junto queremos incluir elementos botânicos, puxar para uma ideia de consciência ambiental que é até uma cara de Curitiba, e elementos abstratos bem coloridos, para compor uma estética mais contemporânea", revela.
Conforme Dimas, parte da equipe que esteve com ele no Motion Layers deve atuar também agora, como a produtora Michele Micheleto e o artista Leandro Cínico.
A Fundação Cultural de Curitiba confirma que estão marcadas reuniões técnicas para discutir o projeto e formalizar a nova execução. A obra deve ser realizada por meio de um edital permanente de credenciamento de artistas lançado em outubro pela prefeitura com foco em teatro, dança e grafite. O mecanismo é menos burocrático do que outras modalidades de editais, permitindo a formação de um “banco de prestadores de serviços na área artística” e contratações diretas.
Multas, notificações e um ciclo que se encerra
Autor do mural que congelava o sorriso de Jack Torrance (protagonista encarnado por Nicholson), Eduardo Melo -- ou Artstenciva, como assina -- soube do "fim" da obra quando a tinta cinza já fora espalhada e secava. Ele conta que se deparou com a ausência de Jack num dia em que seguia pela região central para buscar a filha na escola. Prontamente sacou o celular e fez um registro que, mais tarde, foi para o Instagram. Na postagem, declarava o fechamento de um ciclo, impressão que reafirmou à HAUS.
"Para mim é sobre um ciclo que se fecha e a efemeridade da rua. Passaram-se nove anos, o painel já estava um pouco desgastado. Lá em 2013 nem se fazia a proteção com verniz, seladores, como se faz hoje. Aconteceu. Estamos aqui para pintar outros", arrematou, apesar de admitir que não se sente inclinado a embarcar em projetos semelhantes no momento.
Apesar de ver esta obra desaparecer, o autor avalia que o país tem crescimento que se sobrepõe ao apagamento de painéis e artes do tipo, com destaque para cidades como São Paulo e Belo Horizonte. Sobre as questões burocráticas que decretaram o fim do seu Jack, Eduardo Melo destaca que só soube da bronca posteriormente.
O proponente do projeto, Celestino Dimas, rememora que a equipe envolvida na execução dos murais do Motion Layers optou, à época da pintura, por não inserir quaisquer logomarcas nas obras. O projeto foi viabilizado via edital de Mecenato da Fundação Cultural de Curitiba, com patrocínio do Shopping Mueller, mas nada disso ficou gravado nos painéis. Para ele, o fato torna ainda mais "irônica" a sequência de notificações e multas recebidas pelo prédio, que mencionavam "propaganda irregular".
O acordo firmado com o proprietário do imóvel previa a manutenção da arte por dois anos. A partir de 2015, portanto, ele estaria livre para removê-la, mas Jack seguiu presente por interesse do dono. Mais recentemente, a pintura passou a motivar investidas frequentes da Secretaria Municipal de Urbanismo. Dimas narra que as notificações chegavam mensalmente e que a opção do edifício foi por arcar com os custos de apagar a obra para dar cabo do problema.
Ao comentar a situação, Celestino Dimas aponta eventual despreparo ou desinteresse por discernir entre arte e propaganda. "Eu acho que foi muito mais um critério de gosto pessoal e a comunidade perde por causa de alguém que por alguma razão encrespou com o negócio. O síndico pagava a multa, no mês seguinte recebia outra notificação. Foi sistemático. É lamentável, deveria ser mais criteriosa essa avaliação", completa.
Procurada, a Secretaria de Urbanismo informou que a irregularidade constatada no caso concreto era falta de alvará, que é exigido por lei mesmo em caso de arte realizada com incentivo da prefeitura ou de órgãos como a Fundação Cultural. Sobre isso, o proponente do projeto que resultou nos painéis garante que, à época, todas as exigências foram cumpridas para a execução.
Curiosamente, a ferramenta por meio da qual a licença para a execução de arte urbana é obtida parece colaborar para alguma confusão. Os pedidos desde tipo de autorização em Curitiba passam pelo crivo do Conselho Municipal de Urbanismo e devem ser elaborados em protocolo eletrônico. O passo a passo para tal, no entanto, é o mesmo que está textualmente indicado como sendo para pedidos de "Alvará para instalação de letreiros de publicidade".
HAUS também questionou o Urbanismo municipal sobre outros murais espalhados pela cidade e se há casos semelhantes, que colocariam mais obras a perigo. A informação repassada é de que este tipo de dado não pode ser divulgado.
Nessa esteira, o artista que concebeu o projeto afirma que iniciou contatos com parlamentares e grupos como o núcleo de cultura da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PR) para sugerir a criação de possíveis mecanismos de defesa e preservação das obras de arte urbana da cidade.
Diferente do extinto Jack, os outros dois murais que integravam o projeto Motion Layers ainda podem ser vistos na cidade. Jamie Foxx na pele do pianista, cantor e soul man Ray Charles (de autoria do artista Leandro Lesak, o Cínico) segue na Marechal Deodoro, entre as ruas Conselheiro Laurindo e a João Negrão, mas hoje está parcialmente encoberto por uma estrutura de estacionamento. Na esquina da Ébano Pereira com a Cândido Lopes, a paisagem é dividida pela fachada da Biblioteca Pública do Paraná e um beijo entre Romy Schneider e Woody Allen em cena do filme "Que é que há, gatinha?" (obra realizada posteriormente por Celestino Dimas de modo independente).