Opinião

Jonas Rabinovitch

Jonas Rabinovitch

Na coluna 'No Planeta das Cidades', Jonas Rabinovitch reflete sobre o que aprendeu convivendo com o pior e o melhor da arquitetura, do urbanismo e das artes pelo mundo afora. Arquiteto urbanista, trabalhou por 30 anos em Nova York como Conselheiro Sênior da ONU para inovação e gestão pública e foi convidado para atuar em mais de 80 países. Antes disso, foi assessor de Jaime Lerner no planejamento de Curitiba (PR).

No Planeta das Cidades

Renovação urbana: como Nova York transformou sua pior área no bairro mais novo da cidade

22/10/2024 11:00
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O Titanic teria chegado ali: o velho porto de Nova York, no lado oeste (West Side) de Manhattan.  Com uma área equivalente a 140 campos de futebol, o Hudson Yards transformou um vasto espaço desolado no West Side em um bairro vibrante de uso misto, ampliando a textura urbana de Manhattan. É o maior empreendimento imobiliário privado da história dos EUA (US$ 25 bilhões) e possivelmente o projeto mais complexo na cidade de Nova York.  Não foi fácil: tudo foi construído sobre um pátio ferroviário em pleno funcionamento.  Vários prédios – incluindo o segundo mais alto de Nova York com 101 andares - foram feitos acima de 30 trilhos de trens, incluindo três túneis ferroviários ativos e um novo túnel em construção, ligando Nova York a Nova Jersey debaixo do rio Hudson, a ser concluído em 2035. 

As várias vidas da “Avenida da Morte”

No final do século XIX e início do século XX, a passagem de tantos trens pelo West Side causava muitos acidentes.  Em 1908, o Instituto de Pesquisas de Nova York (Bureau of Municipal Research) afirmou que, desde 1852, os trens já haviam matado 436 pessoas. Por segurança, a ferrovia contratou "West Side cowboys", homens que montavam cavalos e agitavam bandeiras na frente dos trens.  Apesar disso, tantos acidentes aconteceram que a Décima Avenida era conhecida como "Avenida da Morte (Death Avenue)”. A solução, construída apenas em 1933, foi uma linha elevada, a “High Line”, hoje transformada em um parque linear suspenso.
Foto por: Kalmbach Publishing Company
Foto por: Kalmbach Publishing Company

Um passado industrial

O West Side de Nova York sempre foi mais industrial que o lado leste.  A área portuária, de frente para o rio Hudson continha docas, armazéns abandonados, atividades de carga, frete e fábricas.  Além disso, poucas áreas residenciais foram desenvolvidas no West Side.  Ninguém queria morar no “hell’s kitchen” (cozinha do inferno), um bairro violento, barulhento, perto do antigo porto famoso pela sujeira, decadência e marinheiros desordeiros. A área até inspirou musicais como West Side Story, uma adaptação da peça Romeu e Julieta de Shakespeare.  No musical da Broadway, a história foi ambientada na Nova York dos anos 50, retratando a rivalidade entre duas gangues adolescentes de diferentes origens étnicas, os Jets e os Sharks.
Essa complexa transformação do velho porto de Nova York em Hudson Yards, ainda em curso, levou muitas décadas.  Houve tentativas para desenvolver os direitos aéreos acima do pátio ferroviário na década de 1950, incluindo projetos para imensos conjuntos habitacionais na década de 1960. Teria sido um desastre.  Além da conclusão do Centro de Convenções Jacob K. Javits em 1986, nenhum outro desenvolvimento ocorreu.  Os EUA chegaram a oferecer a área em sua proposta para os Jogos Olímpicos de 2012, projetando um imenso estádio olímpico que se transformaria depois no estádio do time de futebol americano, New York Jets, mas a proposta não venceu. 

Oportunidade global: o renascimento de velhas áreas portuárias      

Acompanhando um processo global após a Segunda Guerra, o porto de Nova York mudou-se para Nova Jersey em 1948. Não havia mais espaço em Manhattan para construir portos modernizados usando contêineres, conexões ferroviárias de carga e transferências intermodais.  Pouca gente percebe que a Segunda Guerra também revolucionou o desenho de portos e aeroportos.  Velhas áreas portuárias usando armazéns foram abandonadas criando muitas oportunidades de revitalização urbana:  Gênova (Porto Antico), Hamburgo (Hafen City), Londres (Docklands), Lisboa (Parque das Nações), Marselha (Euroméditerranée), Buenos Aires (Puerto Madero), Rio de Janeiro (Porto Maravilha), outros.   
O Hudson Yards tem uma área aproximada de 150 quadras, incluindo mais de 100 lojas, restaurantes, mais de 4.000 apartamentos (com reserva social para pessoas de menor poder aquisitivo), hotéis, escritórios, escola pública, além de parques e atividades culturais como o The Shed, o High Line e o Vessel.  Explico: o “The Shed” é um complexo cultural com teatros e galerias de arte. O “High Line”, como dito acima, é um parque linear construído sobre a antiga linha ferroviária elevada.  Com mais de 2 km de extensão, o ramal abandonado foi redesenhado como um "sistema vivo" combinando arquitetura paisagística, design urbano e ecologia. O “Vessel” (recipiente) é uma escultura em forma de colmeia com 16 andares, 154 lances de escadas, 2.500 degraus e 80 patamares para os visitantes subirem.  Com custo estimado em US$ 200 milhões, o Vessel gerou controvérsia: alguns definem a escultura como a “torre Eiffel de Nova York”, enquanto outros a criticam como “escadarias que não levam a nada”. Depois de quatro suicídios, a estrutura está sendo envolvida por uma rede de proteção e será reaberta ao público até o final de 2024.    

Desenvolvimento urbano com um toque de realidade social

O preço médio dos melhores apartamentos no Hudson Yards é o mais caro de Nova York no momento, cerca de US$ 7.5 milhões (R$ 42 milhões).   Com preços como esses, morar no bairro mais novo de Nova York é praticamente impossível para a grande maioria de nova-iorquinos.  Ao mesmo tempo, há um programa em Nova York chamado “80/20”:  20% das unidades em certos edifícios recém-construídos são reservadas para serem alugadas por famílias de renda baixa ou moderada. O restante 80% das unidades são vendidas, ou alugadas a preços de mercado.  No caso do Hudson Yards, houve uma loteria para alugar unidades na Maybury Tower, na Décima Avenida com a rua 41 Oeste.  Até agora foram sorteados 114 apartamentos de 1 ou 2 quartos com aluguéis estabilizados entre US$ 1.800 a US$ 3.600 por mês.  Pagar um mínimo de dez mil Reais de aluguel também seria impossível para a grande maioria de brasileiros, mas um apartamento em uma área valorizada de Nova York por esse valor é considerado uma pechincha.  Em outubro de 2024, o aluguel médio para apartamentos de um quarto na cidade de Nova York é de US$ 3.900 por mês (cerca de 21 mil Reais), 150% maior que a média americana de US$ 1.557 por mês.    

Lições para um mundo que se urbaniza

Nem todas as cidades do mundo têm potencial para mobilizar bilhões de dólares, mas alguns princípios universais de renovação urbana podem ser observados:
1) Conexão entre transporte público e renovação urbana: O Metropolitan Transportation Authority (MTA) recebeu os rendimentos da oferta de títulos de desenvolvimento do local em 2006 para pagar por uma extensão da linha 7 do metrô de Nova York até a estação 34th Street–Hudson Yards.   Com o financiamento garantido, o MTA construiu rapidamente a extensão do metrô para o Hudson Yards. 
2) Mudanças na legislação de uso do solo: A principal mudança na lei que permitiu edifícios altos em Hudson Yards foi a criação de um distrito de zoneamento especial (“Special Hudson Yards District"), que permitiu uma mistura de usos e densidades, incluindo novos escritórios e desenvolvimento residencial significativo com maior tolerância de altura, ao mesmo tempo em que exigiu a inclusão de espaços públicos abertos dentro da área de desenvolvimento.  Não foi um processo de negociação rápido, mas acabou dando certo.
3) Mistura de usos: comércio, restaurantes, bares, teatros, cinemas, galerias de arte, residências, hotéis, parques, praças, escolas e outras atrações contribuem para o sucesso do projeto.   
4) Mistura de grupos sociais: a obrigatoriedade de inclusão social em uma porcentagem dos imóveis a serem alugados e a construção de escola pública também contribuem para integrar a nova área na cidade.     
5) Atividades de animação: os escritórios fecham ao final do dia, mas bares, restaurantes e hotéis garantem a animação do local dia e noite, atraindo turistas e residentes.      
6) Visão de longo prazo: não se pode construir um projeto tão complexo de forma muito rápida, mas há o compromisso de estabelecer e seguir com firmeza uma visão comum a longo prazo.     
7) Parceria Público-Privada: quando o setor privado investe e a cidade facilita o processo de forma objetiva e transparente, a cidade lucra.  Todos lucram.
Se você tiver a oportunidade, em sua próxima visita à Nova York pegue a linha 7 do metrô na Times Square para o Hudson Yards.  A passagem de metrô custa só 3 dólares.  Em 5 minutos você estará lá e poderá conferir.       
Foto por: Hudson Yards
Foto por: Hudson Yards