No planeta das cidades

Jonas Rabinovitch

Jonas Rabinovitch

Na coluna 'No Planeta das Cidades', Jonas Rabinovitch reflete sobre o que aprendeu convivendo com o pior e o melhor da arquitetura, do urbanismo e das artes pelo mundo afora. Arquiteto urbanista, trabalhou por 30 anos em Nova York como Conselheiro Sênior da ONU para inovação e gestão pública e foi convidado para atuar em mais de 80 países. Antes disso, foi assessor de Jaime Lerner no planejamento de Curitiba (PR).

No Planeta das Cidades

O Sentido da Gratidão: Buda, uma fonte e flores na floresta

03/11/2023 15:08
Thumbnail

Jonas Rabinovitch em visita ao Nepal | Acervo pessoal

O Nepal é o sereno país dos Himalaias e do místico vale de Katmandu, abrigando mais deuses do que gente – inclusive várias deusas vivas. A deusa viva, ou Kumari, é a tradição de adorar uma menina virgem escolhida como símbolo da energia feminina divina.
Mas o Nepal é também um país com uma turbulenta história política, incluindo o massacre real nepalês em 2001. O príncipe herdeiro Dipendra planejou o assassinato da família real, incluindo seus pais, o rei Birendra e a rainha Aishwarya. Dipendra se suicidou e seu irmão se tornou rei, mas foi deposto em 2007 depois de uma longa guerra interna de inspiração maoísta que aboliu a monarquia. Notícias mais recentes incluem o terremoto de 2015 que arrasou o país e movimentos recentes pela volta da monarquia e do hinduísmo devido à insatisfação com o partido comunista.
Em 2004, a pedido do governo, o escritório da ONU no Nepal organizou um seminário sobre práticas de descentralização para fortalecer a capacidade das cidades e prefeituras no país. Fui convidado para apresentar experiências internacionais de descentralização e visitar projetos no país para debater diretrizes de cooperação internacional.
Vejam bem: naquela época o Nepal era uma monarquia tradicional, mas incluía muitas prefeituras comunistas de tendência maoísta que disputavam espaço na frágil economia nepalesa. O Nepal é independente, mas sempre influenciado pela China e pela Índia - tendo importado a política comunista de um e os milhões de deuses do outro, entre outras coisas.
Em Katmandu me mostraram a intensa agenda do dia seguinte. Querendo encurtar o programa, perguntei sobre a importância de visitarmos uma pequena aldeia. Eles insistiram, dizendo que os habitantes da região queriam agradecer o apoio da ONU. Recusar o convite teria sido um grande erro.
Junto com dois colegas da ONU no Nepal, voamos de Katmandu para Butwal, uma cidade de 195.000 habitantes perto da fronteira com a Índia, na província de Lumbini - um local de peregrinação onde, segundo a tradição budista, a rainha Maya deu à luz Siddhartha Gautama, o Buda, por volta de 564 A.C.
Visitamos vários projetos, inaugurei uma escola, tivemos reuniões com líderes comunitários. Pedi para visitar o local onde Buda teria nascido. Ali, na planície de Teri, vários países budistas construíram templos e mosteiros em um local consagrado como patrimônio histórico da humanidade.
A maior surpresa veio depois. Saímos do carro, me convidaram para caminhar em um campo por cerca de 20 minutos e depois entramos em uma floresta. Chegamos a uma clareira. Achei estranho: a clareira estava cheia de gente. A aldeia inteira estava ali! Me explicaram: “eles querem agradecer a cisterna que a ONU ajudou a construir aqui na fonte”. Uma a uma, várias pessoas foram colocando colares de flores no meu pescoço. Surpreso, eu disse: “mas eu nem participei desse projeto”. O colega da ONU no Nepal riu e explicou: “sim, mas é você quem veio de Nova York para visitá-los”.
Pode não parecer muita coisa, mas fiquei sensibilizado. Entendi com humildade a importância de fazer parte de algo que é muito maior do que eu. Percebi que os problemas começam quando algumas pessoas se julgam maiores do que as instituições que representam. Me senti feliz por receber a gratidão daquela gente, mesmo sem merecer tanto. Tenho retribuído ao valorizar cada momento no qual posso demonstrar gratidão por alguma coisa, por menor que seja.