Moradias Habitacionais

Jonas Rabinovitch

Jonas Rabinovitch

Na coluna 'No Planeta das Cidades', Jonas Rabinovitch reflete sobre o que aprendeu convivendo com o pior e o melhor da arquitetura, do urbanismo e das artes pelo mundo afora. Arquiteto urbanista, trabalhou por 30 anos em Nova York como Conselheiro Sênior da ONU para inovação e gestão pública e foi convidado para atuar em mais de 80 países. Antes disso, foi assessor de Jaime Lerner no planejamento de Curitiba (PR).

No Planeta das Cidades

Moradores de rua: Quais as respostas da Arquitetura e do Urbanismo?    

22/09/2025 15:00
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Moradores de calçada em Chennai, Índia | Fonte: News Trust Org

Há cerca de 150 milhões de moradores de rua pelo mundo afora e mais de 1,6 bilhão de pessoas sem moradia adequada.  Esses números variam segundo diferentes critérios entre países.  No Brasil, a atualização do Cadastro Único acaba de mostrar um dado impressionante: o número de pessoas em situação de rua cresceu 25% em 2024, com o total chegando a 328.000.
Josef Stalin, o ditador russo, dizia que “a morte de uma pessoa é trágica; mas a morte de um milhão de pessoas é só uma estatística’’.  Ele nunca disse que uma coisa é ler uma estatística, mas outra completamente diferente é sair de casa e encontrar moradores de rua em frente à porta da sua casa.  Um casal de amigos, gente decente e de bom coração, trazia refeições para os moradores de estimação em sua calçada, mas mudaram de ideia quando perceberam que a rua começou a ser usada não só como dormitório, mas também como banheiro público, além de atrair crimes.       

Como o planejamento urbano tem enfrentado esse desafio?  
O planejamento urbano/urbanismo e a arquitetura estão na fronteira entre ciência e arte.  Estamos falando da mais científica das artes ou talvez da mais artística das ciências.  Portanto, não há fórmula para uma solução definitiva de habitação para todos.  Qualquer proposta vai envolver políticos, políticas, custos, conflitos de interesse, e as usuais idiossincrasias humanas, inclusive corrupção.  Dito isso, há maneiras inteligentes para se tentar equacionar o problema e propor possíveis soluções.

A mesma resposta para perguntas diferentes?
Trabalhando na ONU em Nova York como Conselheiro Sênior para Desenvolvimento Urbano, eu recebia todos os meses propostas criativas ou mirabolantes para acabar com os desafios de habitação popular no mundo, incluindo a questão dos moradores de rua.
O maior erro dessas propostas é que a solução para o problema da habitação geralmente era uma casa. 
A resposta parece lógica, mas, antes de tudo, eu perguntava: a qual pergunta estamos tentando responder? 
Por exemplo, as propostas defendiam uma casa feita de materiais recicláveis, baratos e acessíveis, pré-fabricada ou não, com desenho simples e funcional.  Algumas permitiriam autoconstrução em regime de mutirão: os próprios moradores fariam suas casas.  Em princípio, nada errado com isso.
A ONU apoia países a desenvolver suas políticas habitacionais  | Fonte: World Atlas
A ONU apoia países a desenvolver suas políticas habitacionais  | Fonte: World Atlas
O problema é que o desafio escondido em um “problema habitacional” revela, quase sempre, três questões mais profundas: 
a) Acesso à terra: Quem não tem renda não consegue comprar um terreno.
b) Infraestrutura: Quem sobrevive com baixa renda mora longe e não tem acesso fácil a saneamento, água, energia, transporte etc.
c) Financiamento e/ou emprego: a maioria da população pobre sobrevive no mercado informal.  
De modo geral, as políticas públicas de habitação têm respondido mal a esses desafios.  É claro que a questão é complexa e multidimensional.  Vou destacar cinco aspectos que têm confundido técnicos e políticos trabalhando com isso, além de algumas soluções.
Habitação Informal: parte do problema ou parte da solução?  | Fonte: The Brasilians
Habitação Informal: parte do problema ou parte da solução?  | Fonte: The Brasilians

1) Os Refratários
Da forma mais atrevida possível, poderíamos até dizer que não existe um “problema de habitação” já que todo mundo mora em algum lugar.  Há moradores de rua - alguns com problemas mentais ou usuários de drogas - que preferem ignorar a existência de abrigos públicos e assistentes sociais para serem moradores de rua por opção.  Há uma minoria que é totalmente refratária a qualquer política pública tentando beneficiá-los.  É preciso começar reconhecendo isso.

2)  Os Moradores de Calçada    
Há organizações que apoiam essa “solução” como a federação Mahila Milan (mulheres unidas) na Índia, organizando apoio legal e esquemas de crédito para cerca de 25.000 famílias em situação de rua.  A “institucionalização” informal de moradores de rua tem acontecido não apenas no Brasil, mas também em cidades da África do Sul, Bangladesh, Índia, México, Nigéria, Paquistão, entre outros.  Por outro lado, a polêmica “arquitetura hostil” tem sido usada para evitar que certos espaços sejam tomados por moradores de rua.  Exemplos: pedras pontiagudas sob viadutos, bancos de praça com divisórias, pinos metálicos em áreas horizontais na fachada de lojas para não virarem dormitórios.             
3)  Recrutamento Organizado
Precisamos admitir sem ingenuidade que há redes explorando moradores de rua para obter ganhos financeiros, utilizando-os para extorquir dinheiro de pessoas e organizações beneficentes. Esses esquemas podem assumir diferentes formas, como a mendicância organizada e as redes de tráfico de mão de obra.  Isso ocorre em vários países, incluindo Brasil, Estados Unidos e França.  Existe ainda o bullying da mendicância, no qual indivíduos disputam locais estratégicos a fim de maximizar os lucros. 
Rocinha, Rio de Janeiro: a maior favela do Brasil já é um bairro | Fonte: Wikipédia Org.
Rocinha, Rio de Janeiro: a maior favela do Brasil já é um bairro | Fonte: Wikipédia Org.

4) Favelas
Existem aproximadamente 12.348 favelas no Brasil, segundo o Censo de 2022, abrigando mais de 16 milhões de pessoas, ou 8 % da população do país.  Não há dados disponíveis sobre o número total de favelas no mundo, mas assentamentos informais semelhantes às favelas brasileiras existem globalmente.  Tive o privilégio de trabalhar em favelas em Bangladesh, Colômbia, Kenya, Índia, México, República Dominicana etc.  Cada uma tem sua própria identidade e energia. 
Há cerca de 50 ou 60 anos atrás, as políticas de “remoção de favelas” eram mais comuns, mas não resolviam o problema.  Assim como muitos viadutos apenas transferem os problemas de tráfego de um lugar para outro, a remoção apenas segrega uma população de baixa renda para locais distantes onde não havia emprego, aumentando seus custos de transporte.  A Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, é um exemplo disso.  Pouco depois, desde a década de 80 começamos a dizer que a favela faz mais parte da solução do que parte do problema.  Porém, nos últimos anos, o tráfico de drogas e as milícias tornaram os desafios ainda mais complexos, principalmente nas maiores cidades do Brasil.  Há enciclopédias inteiras sobre favelas, mas a resposta básica das políticas públicas tem sido tentar urbanizar e melhorar a infraestrutura.  Com relação à questão de segurança pública, programas como as UPP (Unidades de Polícia Pacificadora) não foram bem-sucedidos e, convenhamos, os desafios continuam sem solução. 

5)  Programas de Casa Popular – Quantidade ou Qualidade?
Singapura: diversidade e densidade para acomodar 6 milhões em um pequeno país-ilha | Fonte: Property Guru
Singapura: diversidade e densidade para acomodar 6 milhões em um pequeno país-ilha | Fonte: Property Guru
Estes se dividem em dois grandes grupos: 1) Os que deram certo e para quem.  2) Os que deram errado e para quem.  Nenhum programa dá 100% certo ou 100% errado para todos, da mesma forma.  Não é por acaso que o maior número de programas de habitação que deram certo estão nos países desenvolvidos.  Não apenas porque têm mais dinheiro, mas porque têm melhor governança e menos corrupção.
Entre os que deram certo, Singapura aumentou a oferta de habitação acessível para 80% de sua população.  A Suécia foi pioneira em implementar um programa de controle de aluguéis.  A Finlândia criou o modelo “Moradia em Primeiro Lugar”, para facilitar moradia estável a pessoas em situação de rua.  As políticas habitacionais do Canadá enfatizam parcerias entre governos, o setor privado e organizações comunitárias sem fins lucrativos.  O governo da Coréia do Sul promoveu ativamente a aquisição de casa própria e introduziu iniciativas para reduzir a dívida relacionada à moradia.     
Finlândia: o país priorizou habitação e a população confia no governo | Fonte: Ws Partners BBC.
Finlândia: o país priorizou habitação e a população confia no governo | Fonte: Ws Partners BBC.
Por outro lado, o Programa de Reconstrução e Desenvolvimento (RDP) da África do Sul alega ter construído mais de três milhões de casas.  No entanto, avaliações imparciais mostraram problemas como corrupção, planejamento deficiente, financiamento inadequado e construção de moradias de baixa qualidade.
No Brasil, os problemas com o programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV) incluem a baixa qualidade das moradias, unidades pequenas, localizações remotas que isolam os moradores de empregos e serviços, além do aumento da segregação social e da exposição à criminalidade. O programa também tem sido criticado por perpetuar padrões históricos de injustiça social, beneficiando mais as empreiteiras do que os moradores e levando ao endividamento dos beneficiários. A sigla MCMV significa 1905 em algarismos romanos, situando de forma adequada na história do urbanismo as soluções apresentadas.  Curiosamente, as falhas dos programas de casas populares do Banco Nacional da Habitação (BNH), da época da ditadura militar na década de 70, e as falhas do MCMV são tecnicamente muito parecidas.  Ou seja, meio século depois, mesmo com a transição de governos de “direita” para governos de “esquerda”, evoluímos muito pouco.     

A Cidade para Todos
Bryant Park, Nova York: renovação urbana democrática  | Fonte: PPS Org.
Bryant Park, Nova York: renovação urbana democrática  | Fonte: PPS Org.
Quero concluir com um exemplo: a história do Bryant Park, ao lado da biblioteca central de Nova York, na Quinta Avenida, é fascinante.  Na década de 80, o parque era território de traficantes, usuários de drogas e moradores de rua.  As pessoas tinham medo de entrar no parque, enquanto arquitetos da prefeitura projetavam chuveiros e fogareiros portáteis para moradores de rua. 
O problema era multidimensional e foi resolvido da mesma forma: o Bryant Park foi transformado pela integração de novos equipamentos públicos como mesas de ping-pong, xadrez, mesas e cadeiras móveis, aulas públicas e quiosques de alimentação com uma programação coordenada, incluindo festivais de cinema, shows e um mercado de inverno.  O parque também passou por melhorias paisagísticas com design de inspiração francesa e extensa vegetação, além de vigilância diária "de olho na rua" por lojistas e policiamento reforçado para garantir a segurança do público.  Essa visão abrangente, administrada pela Bryant Park Corporation, transformou um espaço temido e abandonado em um centro urbano vibrante e popular.
Depois de 45 anos de trabalho em planejamento urbano, cheguei a uma conclusão bem simples: um espaço que é de todos não pode nunca ser perdido para uma minoria antissocial em nome de uma suposta “justiça social” — a qual não é justa, democrática nem social. 
Jonas Rabinovitch.