Opinião

Jonas Rabinovitch

Jonas Rabinovitch

Na coluna 'No Planeta das Cidades', Jonas Rabinovitch reflete sobre o que aprendeu convivendo com o pior e o melhor da arquitetura, do urbanismo e das artes pelo mundo afora. Arquiteto urbanista, trabalhou por 30 anos em Nova York como Conselheiro Sênior da ONU para inovação e gestão pública e foi convidado para atuar em mais de 80 países. Antes disso, foi assessor de Jaime Lerner no planejamento de Curitiba (PR).

No Planeta das Cidades

Qual a diferença entre arte moderna e arte contemporânea?

06/12/2024 11:22
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Obra: Impressão, nascer do Sol, de Monet

Muitos usam as expressões “moderno” e “contemporâneo” como se fossem a mesma coisa.  Com relação à arte, há importantes diferenças. A primeira diferença é a época. A arte moderna vai do final do século XIX até aproximadamente a década de 1960, e a arte contemporânea começa a partir daí.  

O Paradoxo da Arte Moderna: a urbanização revoluciona a arte

Cada movimento artístico surge em resposta a mudanças sociais.  Durante muitos séculos a arte retratou principalmente lindas paisagens, vultos importantes ou cenas bíblicas. A arte era mais exclusivista, religiosa e elitista. A Revolução Industrial, a urbanização, o surgimento da burguesia, e a relativa riqueza da Europa no século XIX causou um avanço cultural e uma ruptura artística.  Surgiu o Realismo, que desafiou a rigidez moral e estética da época, retratando temas da vida cotidiana. O artista se transforma em crítico e depois em beneficiário do sistema que o criou.    

O francês Coubert escandalizou Paris em 1872 com a tela “Adormecidas”, retratando duas mulheres nuas dormindo em uma cama, entrelaçadas em um abraço erótico.  Isso resultou em um caso policial proibindo a exibição da pintura por muitos anos.  Sua tela “A Origem do Mundo” de 1866 mostra apenas uma detalhada vagina com vastos pelos púbicos e escandaliza até hoje.  
Gustave Coubert - “Adormecidas” 1866 (realismo)
Gustave Coubert - “Adormecidas” 1866 (realismo)

Millet retratou a pobreza de mulheres recolhendo sobras de trigo (“As Respigadoras”) chocando a sociedade no Salão das Artes de Paris em 1857. O carnavalesco Joãozinho Trinta disse em 1980 que “pobre gosta é de luxo; quem gosta de pobreza é intelectual”. Se vivesse em Paris do século XIX, ele, provavelmente, teria dito que quem gosta de pobreza são os pintores realistas, já que a sociedade da época reagiu com desprezo àquelas obras que hoje valem milhões.    

Movimentos do Modernismo Artístico: Forma e Conteúdo

Van Gogh não era propriamente um intelectual, mas começou retratando “Comedores de Batata” (1885). Ele pintou cinco figuras tristes em tons de terra. A mensagem social da pintura era mais importante para Van Gogh do que a anatomia correta.  Isso atraiu muitas críticas devido às cores escuras e figuras cheias de erros técnicos.  Esse quadro é classificado como “realista”, mas Van Gogh acabou se consagrando como pintor impressionista, assim como Monet, Renoir, Degas, Cézanne e outros que romperam com os rígidos padrões estéticos do barroco, do romantismo e da pintura acadêmica que existiam na época. 
Os Impressionistas passaram a pintar temas do cotidiano segundo suas próprias impressões. O quadro “Impressão, nascer do sol” é uma pintura de Monet de 1872, considerada a inspiração para o nome Impressionismo.
Vincent Van Gogh - “Comedores de Batata” 1885 (realismo)
Vincent Van Gogh - “Comedores de Batata” 1885 (realismo)

Acho importante não exagerar rótulos de movimentos artísticos, mas eles nos ajudam a entender as mudanças.  Alguns movimentos da arte moderna incluem o Cubismo de Braque e Picasso, que pintavam pessoas e objetos através de formas geométricas e perspectivas distorcidas, lembrando esculturas africanas.   O Fauvismo de Matisse, deu ênfase a cores e formas soltas, despojadas. O Abstracionismo de Mondrian e Kandinsky não representava figuras ou objetos definidos, mas formas geométricas, linhas ou manchas coloridas. O Surrealismo de Dalí, Magritte ou De Chirico representa figuras, objetos e paisagens com efeitos fantásticos ou incongruentes, como se fossem imagens vindas de sonhos ou do inconsciente.  
Dadaísmo, surgido em 1916, foi uma forma de protestar contra a Primeira Guerra Mundial e a “sociedade capitalista”. Ironicamente, a riqueza da Europa no início do século XX gerou a Primeira Guerra Mundial.  As potências da época disputavam mercados, colônias e fontes de matéria-prima na África.   Por outro lado, essa nova riqueza também gerou um diversificado mercado para colecionadores de obras de arte.  Isso permitiu que artistas como Marcel Duchamp criasse sua famosa escultura “A Fonte”, em 1917: um mictório comprado em uma loja de ferragens. Duchamp também emitiu “títulos de capital” para levantar fundos por meio de um projeto de apostas chamado “Títulos de Monte Carlo”. Em 1919 pagou seu dentista desenhando um cheque no valor de US$ 115, chamado de “Cheque Tzanck”, que era o nome de seu dentista.  Críticos alegam que Duchamp “estava interessado no valor especulativo da arte e em como o valor artístico e financeiro é gerado por meio de trocas sociais”. Começa a arte conceitual. O fato é que o esperto dentista aceitou o cheque porque sabia que o autógrafo de Duchamp no cheque valia até mais do que uma consulta dentária.  
Fecha-se o círculo: o capitalismo criticado por alguns artistas permitiu a afluência dos investidores em arte, incentivando assim uma produção artística anárquica e moderna. A própria sociedade criticada pelos artistas gerou os meios para que eles pudessem sobreviver - e até enriquecer – criticando o próprio meio que os sustenta.  Concordem ou não, esse processo social, a meu ver, também virou parte da arte. 

O Paradoxo da Arte Contemporânea: A arte que não é arte     

A arte contemporânea é aquela que continua acontecendo hoje em dia, com vários artistas ainda vivos.  Alguns vivíssimos.  Mas, paradoxalmente, a maioria dos críticos concorda que o início do rótulo “arte contemporânea” aconteceu na década de 1960 ou 1970.    
A transição da arte moderna para a arte contemporânea pode ser marcada por vários movimentos:   o "expressionismo abstrato" se afastou do conteúdo da imagem e se concentrou mais no processo de criação da obra de arte em si. É caracterizado por telas em grande escala com cores fortes e pinceladas expressivas, transmitindo intensidade emocional, como nos trabalhos de Jackson Pollock e Mark Rothko.  
Jackson Pollock - “Convergência” 1952 (arte abstrata)
Jackson Pollock - “Convergência” 1952 (arte abstrata)

Outra distinção é o fato de que a maior parte da Arte Moderna foi criada em tela, enquanto a Arte Contemporânea se expandiu para um espectro mais amplo de meios, desde design de objetos, uso da tecnologia, artes gráficas e, mais recentemente, performances teatrais e conceituais, new media art e arte digital.  Em muitos casos, a ideia por trás da obra ou o texto que explica a obra acaba sendo mais importante do que a obra de arte em si.  Por exemplo, visitei no Museu de Arte Moderna de Nova York (MOMA) a exposição “A Artista Presente” na qual Marina Abramovic - famosa por suas performances – sentou-se frente a membros da audiência durante vários dias, aproximadamente 731 horas e 30 minutos de silêncio imóvel.
A arte contemporânea inclui grande diversidade de mídias, materiais, temas, abordagens conceituais, exploração de questões sociais e políticas, rejeição de fronteiras tradicionais, e envolvimento com o globalismo e multiculturalismo. A arte contemporânea virou um vale-tudo, levando muita gente a perguntar: mas isso é arte? Ela não tem um único princípio organizador uniforme, uma definição precisa, uma ideologia ou um “ismo”. Virou um “tudismo”
.  
Em conclusão, a própria reação atônita da sociedade às novas fronteiras da arte contemporânea acabou incorporada a ela. E essas “obras de arte” são vendidas e comercializadas normalmente.  Pessoalmente, acho que há uma “bolha” que um dia vai estourar.  

Entendo que, em nossa sociedade, artefatos culturais necessitam uma etiqueta de preço para serem valorizados.  Mas é perfeitamente possível que algum dia as pessoas perguntem: será que uma banana presa com fita adesiva na parede, obra do italiano Maurizio Cattelan, realmente vale US$ 120.000? E a série “Quem Tem Medo do Vermelho, Amarelo e Azul?” mostrando gigantescos painéis pintados em cada uma dessas cores, realmente vale US$ 84 milhões de dólares?  Essa série de pinturas gigantescas bateu um recorde de preço na famosa casa de leilões Christie’s em Nova York e foi explicada assim: “A série de Barnett Newman, pintada entre 1966 e 1970, exemplifica a emancipação da cor. Neste caso, a cor é o tema, ela não representa nada, ela apenas se expressa”. E obrigado pelos 84 milhões de dólares.
 
Barnett Newman – “Quem tem medo do vermelho, amarelo e azul?”  1970 (expressionismo abstrato)
Barnett Newman – “Quem tem medo do vermelho, amarelo e azul?”  1970 (expressionismo abstrato)

Enfim, a arte incorporou a vida ou a vida incorporou a arte?  Será que isso representa a morte da arte como muitos a conhecem?  Ou seriam apenas especulações do mercado para inflar preços de obras de arte?  
Se a arte virou um vale-tudo, e a arquitetura? É mais complexa ainda, por ser tridimensional e necessitar habitabilidade e praticidade: as pessoas precisam entrar e usar um edifício.          
Por uma questão de espaço, deixo para o próximo artigo desta coluna outra pergunta crucial: você sabe a diferença entre arquitetura moderna e arquitetura contemporânea?