No Planeta das Cidades
Jonas Rabinovitch
Na coluna 'No Planeta das Cidades', Jonas Rabinovitch reflete sobre o que aprendeu convivendo com o pior e o melhor da arquitetura, do urbanismo e das artes pelo mundo afora. Arquiteto urbanista, trabalhou por 30 anos em Nova York como Conselheiro Sênior da ONU para inovação e gestão pública e foi convidado para atuar em mais de 80 países. Antes disso, foi assessor de Jaime Lerner no planejamento de Curitiba (PR).
No Planeta das Cidades
Como se reconstrói uma cidade?
Jonas e Mahbub, Cabul, 2002 | Arquivo pessoal/Jonas Rabinovitch
Em 2002 fiz parte da primeira missão da ONU/Banco Mundial para reconstrução de Cabul, no Afeganistão. Saindo de Nova York, fui para Islamabad, no Paquistão. Depois, embarcamos num avião fretado pela ONU. Não havia voos comerciais unindo o Afeganistão ao mundo.
Ao chegar, cenas inesquecíveis: o prédio do aeroporto de Cabul coberto de buracos de explosões. Os funcionários do aeroporto pegavam as malas do avião em carrinhos de mão. O “setor de imigração” era uma mesa e uma cadeira. Um funcionário atarefado recolhia os passaportes explicando que nos devolveriam em dois dias.
Apenas um hotel funcionava, onde estavam os jornalistas internacionais. Não podíamos ficar ali, não era seguro. Um colega, motorista da ONU chamado Mahbub, nos levou para a “pensão da ONU” – uma quadra no centro da cidade cercada por sacos de areia e arame farpado. Toque de recolher às 9h da noite.
No primeiro dia em Cabul, o briefing de segurança: um curso sobre o que fazer para evitar riscos. Por exemplo, a população tem o hábito de oferecer chá ou frutas para estrangeiros, seguindo sua forte tradição de hospitalidade. Fomos orientados a não aceitar nada e agradecer com educação.
Expliquei ao motorista Mahbub que eu gostaria de visitar as áreas destruídas, 40% da cidade. Ele respondeu: “Áreas destruídas por quem? Pelos hazaras? Pelos pashtuns? Pelos russos?”. A resposta de Mahbub esclarecia muita coisa. A população de Cabul tem um mapa mental sobre quais partes da cidade foram destruídas em quais conflitos. Além disso, esse “mapa” de destruição urbana mostrava a complexidade do desafio de reconstrução.
Afinal, o que faz a ONU em uma situação pós-conflito? O que é uma “Missão de Reconstrução”?
De uma maneira muito simples, trata-se de projetar o que teria que ser feito, como, por quem, quanto iria custar – incluindo indicadores, cronograma e resultados esperados – com base em muitas entrevistas com ministros, funcionários públicos e comunidades. Países desenvolvidos prometeram US$ 4 bilhões para reconstrução do país, mas essa quantia precisava de projetos para que as manchetes virassem realidade.
Nosso principal contato no governo era o ministro para desenvolvimento e cooperação internacional Ashraf Ghani. Depois ele se tornou presidente do país.
Na primeira reunião com toda a equipe, ele disse: “o trabalho de vocês é muito importante como primeira missão de reconstrução. Eu queria aconselhar vocês a olharem com atenção a experiência de uma cidade chamada Curitiba, no Brasil, onde há lições muito interessantes”. O ministro ainda não sabia que sou brasileiro e havia trabalhado por muitos anos em Curitiba como assessor internacional do prefeito Jaime Lerner. Quando soube, me recebeu com um tapinha nas costas: “bem-vindo ao time!”. Fui convidado depois a ficar mais seis meses, mas não pude aceitar.
Mahbub me ajudou a entender a complexidade da história recente da cidade.
- Mahbub, como era a vida na época do Taliban? - Triste. A gente não podia ter festas, ouvir música, mulheres não podiam sair na rua... - Mahbub, a sua esposa usa burca? - Claro. - Por quê? - Porque é correto. - E por que a burca é azul clara? - Porque é bonito, elas ficam parecidas com pássaros... há países onde a burca é preta, fica tudo muito triste...
Espero que esteja tudo bem com Mahbub e sua família. Leio as notícias atuais sobre Cabul e o imagino pensando: “é... está ficando tudo muito triste...”.