Urbanismo

Jonas Rabinovitch

Jonas Rabinovitch

Na coluna 'No Planeta das Cidades', Jonas Rabinovitch reflete sobre o que aprendeu convivendo com o pior e o melhor da arquitetura, do urbanismo e das artes pelo mundo afora. Arquiteto urbanista, trabalhou por 30 anos em Nova York como Conselheiro Sênior da ONU para inovação e gestão pública e foi convidado para atuar em mais de 80 países. Antes disso, foi assessor de Jaime Lerner no planejamento de Curitiba (PR).

No Planeta das Cidades

As Cidades Invisíveis

20/01/2025 12:48
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"As Cidades Invisíveis" de Italo Calvino ilustradas por Karina Puente

Cidades mostram uma realidade visível, mas também há vários tipos de “cidades invisíveis”.  Por exemplo, há cerca de 3 milhões de ratos vivendo abaixo de Nova York, um terço da população humana.  Se você pensou em Tom e Jerry, saiba que a população de gatos por lá é de 1 milhão, metade domésticos.  Mas, na realidade de Nova York, gatos e ratos interagem pouco entre si.  Os humanos também.  

A rede de ruas subterrâneas em Montreal, Canadá, tem 33 quilômetros de extensão conectando estações de metrô a shopping centers, museus, universidades e hotéis.  Isso porque os invernos de Montreal são muito frios, com temperaturas de até -30°C.  

Shopping Center abaixo de Montreal, Canadá | Fonte: Trip Advisor
Shopping Center abaixo de Montreal, Canadá | Fonte: Trip Advisor

A Capadócia, na Turquia, contém várias cidades subterrâneas históricas formadas por erupções vulcânicas.  Essas cidades foram inicialmente habitadas pelos hititas, depois pelos primeiros cristãos, como esconderijos.  Perto de Roma há a famosa rede de catacumbas, antigos cemitérios subterrâneos usados por cristãos e judeus contendo 150.000 sepulturas.  Nápoles também tem muitas câmaras e túneis abaixo da cidade, incluindo canais e reservatórios para água, além de catacumbas.  
Budapeste, Estocolmo, Genebra, Kiev, Moscou, Paris, e Seul também têm áreas subterrâneas conectando estações de metrô ao comércio, servindo como parte dos antigos sistemas de esgotos e águas pluviais ou ainda áreas construídas como esconderijos e passagens secretas, e hoje servindo como atrações turísticas.

Ou seja, cada cidade tem uma realidade visível e invisível.  O invisível pode ser parte do passado histórico de cada cidade ou parte de seu desenho urbano mais avançado.  
Além disso, toda cidade tem necessariamente uma parte invisível relacionada à sua infraestrutura: galerias de águas pluviais, redes de água, saneamento, energia e, em muitos casos, redes de transporte como sistemas de metrô.  

Tive a oportunidade de visitar abaixo da Disney World, na Flórida, o sistema “utilidors” (corredores utilitários), outra espécie de “cidade subterrânea”.  Com uma área equivalente a 5 campos de futebol, é usado para remover lixo, abastecer restaurantes e permitir a circulação de funcionários e serviços sem perturbar o funcionamento do parque.  
“<strong>Utilidors</strong>”: uma cidade invisível abaixo do Magic Kingdom da Disney, Flórida | Fonte: ClickOrlando
“<strong>Utilidors</strong>”: uma cidade invisível abaixo do Magic Kingdom da Disney, Flórida | Fonte: ClickOrlando

Cidades impermeáveis:  o invisível fica visível

Assim como a parte visível das cidades causa problemas urbanos bem conhecidos como congestionamentos, poluição e violência, a parte invisível também pode causar problemas extremamente visíveis como inundações, dificuldades de drenagem e infiltrações de resíduos líquidos e sólidos no sistema de recolhimento de água da chuva.  Esse fenômeno é conhecido como “língua negra” e acontece até na praia de Copacabana, no Rio.
Mais da metade da população mundial vive em áreas urbanas.  A área construída em uma cidade é diferente do campo: quando chove em uma área rural, grande parte da água da chuva é absorvida pelo solo.  As cidades crescem aumentando as áreas impermeabilizadas cobertas por edifícios, telhados residenciais e comerciais, estradas, ruas, estacionamentos, os quais impedem a absorção de água.  A água da chuva pode rapidamente se acumular em áreas de baixa elevação, aumentando o risco de inundações locais, como aconteceu em Miami, Nova Orleans ou Porto Alegre.  Ou então causando sérios deslizamentos em áreas de encostas, como no Rio de Janeiro e em suas cidades serranas: Friburgo, Petrópolis e Teresópolis. 
Deslizamento em Petrópolis, RJ | Fonte: CNN Brasil
Deslizamento em Petrópolis, RJ | Fonte: CNN Brasil
As inundações urbanas podem ser causadas por vários fatores, incluindo desmatamento, mudanças climáticas e alterações e retificações no leito dos rios devido à urbanização.

Mudança Climática e Urbanização – Realidade e Controvérsia

Tive o privilégio de ser convidado como expert internacional para integrar o grupo fundador do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), um órgão das Nações Unidas. Seu trabalho é promover o conhecimento científico sobre as mudanças climáticas aceleradas por atividades humanas.  O tema é controverso e foi excessivamente politizado.  Enquanto alguns julgam não existir nenhuma relação entre atividades humanas e clima, há evidências concretas que o desmatamento, a industrialização e o transporte mal planejados contribuem para mudanças climáticas.  Tenho dúvidas sobre métodos para quantificar isso, mas defendo que o planejamento do transporte público pode sem dúvida beneficiar a qualidade do meio ambiente e da vida em áreas urbanas.   O IPCC também confirmou que "os riscos econômicos associados a futuras inundações de águas superficiais em cidades são consideráveis."
Porto Alegre – inundação histórica em maio de 2024 | Fonte: Revista PEGN
Porto Alegre – inundação histórica em maio de 2024 | Fonte: Revista PEGN

Entre 1961 e 2020, quase 10.000 casos de inundações urbanas foram relatados com 1,3 milhão de mortes e um mínimo de US$ 3,3 trilhões em perdas financeiras.  Em média, o total de mortes relatadas em todo o mundo foi em média de 23.000 por ano nas últimas 6 décadas, com uma taxa equivalente a uma morte a cada 24 minutos.  O desmatamento de morros para construção de condomínios de luxo ou de favelas também traz consequências drásticas.

Desenhando com a Natureza: o que é Resiliência?

De modo geral, resiliência é a capacidade de enfrentar e superar adversidades.  Isso funciona para pessoas, mas também para cidades.  Cidades que seguem apenas as forças de mercado e não se preocupam com planejamento sofrem consequências e perdem sua resiliência.

Com relação às inundações, a abordagem convencional é “enterrar” rios construindo caras galerias pluviais subterrâneas e “endireitando” riachos.  Isso envolve cavar um canal mais reto em áreas onde os rios serpenteiam e até cimentar suas margens.  A lógica por trás disso é acelerar o fluxo de água em áreas propensas a inundações para impedir que a água “fique parada”. No entanto, o que acontece na prática é que isso tende a transferir a inundação para outros pontos. Da mesma forma que um viaduto apenas transfere o congestionamento de um ponto para outro, iniciando um círculo vicioso, o “endireitamento” de rios e a construção de galerias pluviais podem apenas transferir áreas de inundação e iniciar um círculo vicioso semelhante em outro lugar.  A tendência atual é fazer o contrário:  diminuir a velocidade da água e facilitar sua absorção através de obras de menor custo.  Algumas soluções incluem:  

1) Construção de parques com lagoas em áreas sujeitas a inundação, como foi feito em Curitiba nos parques Barigui, Barreirinha, São Lourenço, e em vários outros.  Dessa forma, as lagoas funcionam para “acomodar” inundações.  
O Parque Barigui faz parte de um grande sistema para prevenir inundações na cidade de Curitiba | Fonte: Band News Curitiba
O Parque Barigui faz parte de um grande sistema para prevenir inundações na cidade de Curitiba | Fonte: Band News Curitiba

2) “Ruas Verdes”: Também conhecidas como ruas sustentáveis ou ecologicamente corretas, as ruas verdes são uma ferramenta para gerenciamento de águas pluviais. Os principais recursos incluem o uso de pavimentos permeáveis, árvores plantadas estrategicamente e a integração de valas ecológicas e "jardins de chuva", combinando várias tecnologias verdes.  Em Seattle, o projeto “Street Edge Alternatives” usou valas verdes para criar uma paisagem mais natural e absorver 99% do volume de águas pluviais.  Em Portland, o programa Green Streets usa ruas verdes para gerenciar o escoamento de águas pluviais em sua fonte.  Em Sheffield na Inglaterra, foram incorporadas valas verdes, paisagismo, pavimentos permeáveis e jardins de chuva para ajudar a aumentar a resiliência.  
Rua Verde em Portland, Oregon, EUA | Fonte: Flickr
Rua Verde em Portland, Oregon, EUA | Fonte: Flickr

3) “Cidades-esponja” – O nome contém marketing, mas inclui soluções usadas em Berlim, Shenzhen na China e Auckland na Nova Zelândia para minimizar o impacto de chuvas fortes em áreas urbanas.  Por exemplo, após sofrer inundações repentinas em 2017, Berlim adotou o princípio da “esponjosidade” como parte da lei para novos desenvolvimentos urbanos.

Concreto permeável – o que é bom para a Europa é bom para o Brasil?

O concreto permeável é muito usado na Alemanha, em outros locais na Europa e em algumas cidades nos EUA.  Mas essa ideia seria adaptável ao Brasil? 
1) O primeiro desafio seria a economia de escala.  As cidades brasileiras usam tecnologias de trabalho intensivo, low-tech, e materiais bem mais baratos. Mudar materiais, técnicas construtivas e treinar pessoal para uma cidade inteira seria uma despesa e um trabalho extra que não interessa muito à maioria dos nossos prefeitos.  Além disso, frequentemente a primeira pergunta que muitos de nossos gestores fazem é: “o que eu ganho com isso”? Alguns fornecedores de material de construção também sabem disso.
2) Embora o concreto poroso, também conhecido como concreto permeável, possa ser uma solução sustentável para calçadas, há alguns motivos pelos quais muitas cidades na Europa e nos EUA ainda não podem usá-lo:  o concreto permeável pode não ser forte o suficiente para suportar a vida útil esperada de uma calçada; requer manutenção anual para manter os vazios livres de sujeira e detritos; tem uma capacidade de carga limitada; pode não ser adequado para áreas com tráfego pesado ou áreas com potencial contaminação de águas subterrâneas.  O concreto permeável é mais fraco do que as superfícies tradicionais devido ao seu alto teor de cascalho, além de ser uma tecnologia relativamente nova que não foi testada ainda por longos períodos.  A reciclagem de concreto exige máquinas especiais muito caras. Apenas uma compra em escala, através de um consórcio de cidades, por exemplo, seria factível - mas ainda não temos no Brasil esse tipo de organização administrativa.  Enfim, uma “boa ideia” sempre depende de critérios para análise, adaptação e implementação.  

Obras invisíveis não dão votos

Por serem “invisíveis” e caros, os serviços de infraestrutura acabam sendo preteridos em muitas cidades brasileiras.  De acordo com o Censo de 2022, 24,3% da população brasileira, ou cerca de 49 milhões de pessoas, não têm acesso a uma estrutura adequada de saneamento básico.

Segundo o IBGE, o Brasil possui 5.571 municípios.  A desigualdade regional no acesso ao saneamento básico também é evidente: nos 20 municípios mais desenvolvidos, 95,52% da população tem acesso a saneamento, mas nos 20 municípios mais pobres, o percentual é de apenas 31,78%.  

Para concluir, o panorama é muito diverso:  há ratos comendo restos de pizza nos túneis do metrô de Nova York, turistas explorando cavernas na Capadócia ou catacumbas em Roma, inundações urbanas causadas por falta de planejamento, e muita gente sem serviços básicos de água tratada e saneamento.  E há soluções para todos esses problemas, se existir planejamento adequado e seriedade administrativa.  
Catacumbas abaixo de Roma: uma rede com mais de 130 km, contendo 150.000 sepulturas | Fonte: Ticket Romes
Catacumbas abaixo de Roma: uma rede com mais de 130 km, contendo 150.000 sepulturas | Fonte: Ticket Romes

As cidades que a gente não vê influenciam - e muito - a cidade que a gente vê.  
Enquanto algumas cidades ganham manchetes como cenários de problemas, outras se transformam em referência e brilham por efeito de uma outra força invisível, mas extremamente importante: o potencial de cada um que investe a cada dia todo o sentido de sua vida em sua cidade.  É essa força que faz com que algumas cidades acabem visivelmente pertencendo à humanidade como um todo ao longo do tempo.