Urbanismo
Jonas Rabinovitch
Na coluna 'No Planeta das Cidades', Jonas Rabinovitch reflete sobre o que aprendeu convivendo com o pior e o melhor da arquitetura, do urbanismo e das artes pelo mundo afora. Arquiteto urbanista, trabalhou por 30 anos em Nova York como Conselheiro Sênior da ONU para inovação e gestão pública e foi convidado para atuar em mais de 80 países. Antes disso, foi assessor de Jaime Lerner no planejamento de Curitiba (PR).
No Planeta das Cidades
As Cidades Invisíveis
"As Cidades Invisíveis" de Italo Calvino ilustradas por Karina Puente
Cidades mostram uma realidade visível, mas também há vários tipos de “cidades invisíveis”. Por exemplo, há cerca de 3 milhões de ratos vivendo abaixo de Nova York, um terço da população humana. Se você pensou em Tom e Jerry, saiba que a população de gatos por lá é de 1 milhão, metade domésticos. Mas, na realidade de Nova York, gatos e ratos interagem pouco entre si. Os humanos também.
A rede de ruas subterrâneas em Montreal, Canadá, tem 33 quilômetros de extensão conectando estações de metrô a shopping centers, museus, universidades e hotéis. Isso porque os invernos de Montreal são muito frios, com temperaturas de até -30°C.
A Capadócia, na Turquia, contém várias cidades subterrâneas históricas formadas por erupções vulcânicas. Essas cidades foram inicialmente habitadas pelos hititas, depois pelos primeiros cristãos, como esconderijos. Perto de Roma há a famosa rede de catacumbas, antigos cemitérios subterrâneos usados por cristãos e judeus contendo 150.000 sepulturas. Nápoles também tem muitas câmaras e túneis abaixo da cidade, incluindo canais e reservatórios para água, além de catacumbas.
Budapeste, Estocolmo, Genebra, Kiev, Moscou, Paris, e Seul também têm áreas subterrâneas conectando estações de metrô ao comércio, servindo como parte dos antigos sistemas de esgotos e águas pluviais ou ainda áreas construídas como esconderijos e passagens secretas, e hoje servindo como atrações turísticas.
Ou seja, cada cidade tem uma realidade visível e invisível. O invisível pode ser parte do passado histórico de cada cidade ou parte de seu desenho urbano mais avançado.
Além disso, toda cidade tem necessariamente uma parte invisível relacionada à sua infraestrutura: galerias de águas pluviais, redes de água, saneamento, energia e, em muitos casos, redes de transporte como sistemas de metrô.
Tive a oportunidade de visitar abaixo da Disney World, na Flórida, o sistema “utilidors” (corredores utilitários), outra espécie de “cidade subterrânea”. Com uma área equivalente a 5 campos de futebol, é usado para remover lixo, abastecer restaurantes e permitir a circulação de funcionários e serviços sem perturbar o funcionamento do parque.
Cidades impermeáveis: o invisível fica visível
Assim como a parte visível das cidades causa problemas urbanos bem conhecidos como congestionamentos, poluição e violência, a parte invisível também pode causar problemas extremamente visíveis como inundações, dificuldades de drenagem e infiltrações de resíduos líquidos e sólidos no sistema de recolhimento de água da chuva. Esse fenômeno é conhecido como “língua negra” e acontece até na praia de Copacabana, no Rio.
Mais da metade da população mundial vive em áreas urbanas. A área construída em uma cidade é diferente do campo: quando chove em uma área rural, grande parte da água da chuva é absorvida pelo solo. As cidades crescem aumentando as áreas impermeabilizadas cobertas por edifícios, telhados residenciais e comerciais, estradas, ruas, estacionamentos, os quais impedem a absorção de água. A água da chuva pode rapidamente se acumular em áreas de baixa elevação, aumentando o risco de inundações locais, como aconteceu em Miami, Nova Orleans ou Porto Alegre. Ou então causando sérios deslizamentos em áreas de encostas, como no Rio de Janeiro e em suas cidades serranas: Friburgo, Petrópolis e Teresópolis.
As inundações urbanas podem ser causadas por vários fatores, incluindo desmatamento, mudanças climáticas e alterações e retificações no leito dos rios devido à urbanização.
Mudança Climática e Urbanização – Realidade e Controvérsia
Tive o privilégio de ser convidado como expert internacional para integrar o grupo fundador do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), um órgão das Nações Unidas. Seu trabalho é promover o conhecimento científico sobre as mudanças climáticas aceleradas por atividades humanas. O tema é controverso e foi excessivamente politizado. Enquanto alguns julgam não existir nenhuma relação entre atividades humanas e clima, há evidências concretas que o desmatamento, a industrialização e o transporte mal planejados contribuem para mudanças climáticas. Tenho dúvidas sobre métodos para quantificar isso, mas defendo que o planejamento do transporte público pode sem dúvida beneficiar a qualidade do meio ambiente e da vida em áreas urbanas. O IPCC também confirmou que "os riscos econômicos associados a futuras inundações de águas superficiais em cidades são consideráveis."
Entre 1961 e 2020, quase 10.000 casos de inundações urbanas foram relatados com 1,3 milhão de mortes e um mínimo de US$ 3,3 trilhões em perdas financeiras. Em média, o total de mortes relatadas em todo o mundo foi em média de 23.000 por ano nas últimas 6 décadas, com uma taxa equivalente a uma morte a cada 24 minutos. O desmatamento de morros para construção de condomínios de luxo ou de favelas também traz consequências drásticas.
Desenhando com a Natureza: o que é Resiliência?
De modo geral, resiliência é a capacidade de enfrentar e superar adversidades. Isso funciona para pessoas, mas também para cidades. Cidades que seguem apenas as forças de mercado e não se preocupam com planejamento sofrem consequências e perdem sua resiliência.
Com relação às inundações, a abordagem convencional é “enterrar” rios construindo caras galerias pluviais subterrâneas e “endireitando” riachos. Isso envolve cavar um canal mais reto em áreas onde os rios serpenteiam e até cimentar suas margens. A lógica por trás disso é acelerar o fluxo de água em áreas propensas a inundações para impedir que a água “fique parada”. No entanto, o que acontece na prática é que isso tende a transferir a inundação para outros pontos. Da mesma forma que um viaduto apenas transfere o congestionamento de um ponto para outro, iniciando um círculo vicioso, o “endireitamento” de rios e a construção de galerias pluviais podem apenas transferir áreas de inundação e iniciar um círculo vicioso semelhante em outro lugar. A tendência atual é fazer o contrário: diminuir a velocidade da água e facilitar sua absorção através de obras de menor custo. Algumas soluções incluem:
1) Construção de parques com lagoas em áreas sujeitas a inundação, como foi feito em Curitiba nos parques Barigui, Barreirinha, São Lourenço, e em vários outros. Dessa forma, as lagoas funcionam para “acomodar” inundações.
2) “Ruas Verdes”: Também conhecidas como ruas sustentáveis ou ecologicamente corretas, as ruas verdes são uma ferramenta para gerenciamento de águas pluviais. Os principais recursos incluem o uso de pavimentos permeáveis, árvores plantadas estrategicamente e a integração de valas ecológicas e "jardins de chuva", combinando várias tecnologias verdes. Em Seattle, o projeto “Street Edge Alternatives” usou valas verdes para criar uma paisagem mais natural e absorver 99% do volume de águas pluviais. Em Portland, o programa Green Streets usa ruas verdes para gerenciar o escoamento de águas pluviais em sua fonte. Em Sheffield na Inglaterra, foram incorporadas valas verdes, paisagismo, pavimentos permeáveis e jardins de chuva para ajudar a aumentar a resiliência.
3) “Cidades-esponja” – O nome contém marketing, mas inclui soluções usadas em Berlim, Shenzhen na China e Auckland na Nova Zelândia para minimizar o impacto de chuvas fortes em áreas urbanas. Por exemplo, após sofrer inundações repentinas em 2017, Berlim adotou o princípio da “esponjosidade” como parte da lei para novos desenvolvimentos urbanos.
Concreto permeável – o que é bom para a Europa é bom para o Brasil?
O concreto permeável é muito usado na Alemanha, em outros locais na Europa e em algumas cidades nos EUA. Mas essa ideia seria adaptável ao Brasil?
1) O primeiro desafio seria a economia de escala. As cidades brasileiras usam tecnologias de trabalho intensivo, low-tech, e materiais bem mais baratos. Mudar materiais, técnicas construtivas e treinar pessoal para uma cidade inteira seria uma despesa e um trabalho extra que não interessa muito à maioria dos nossos prefeitos. Além disso, frequentemente a primeira pergunta que muitos de nossos gestores fazem é: “o que eu ganho com isso”? Alguns fornecedores de material de construção também sabem disso.
2) Embora o concreto poroso, também conhecido como concreto permeável, possa ser uma solução sustentável para calçadas, há alguns motivos pelos quais muitas cidades na Europa e nos EUA ainda não podem usá-lo: o concreto permeável pode não ser forte o suficiente para suportar a vida útil esperada de uma calçada; requer manutenção anual para manter os vazios livres de sujeira e detritos; tem uma capacidade de carga limitada; pode não ser adequado para áreas com tráfego pesado ou áreas com potencial contaminação de águas subterrâneas. O concreto permeável é mais fraco do que as superfícies tradicionais devido ao seu alto teor de cascalho, além de ser uma tecnologia relativamente nova que não foi testada ainda por longos períodos. A reciclagem de concreto exige máquinas especiais muito caras. Apenas uma compra em escala, através de um consórcio de cidades, por exemplo, seria factível - mas ainda não temos no Brasil esse tipo de organização administrativa. Enfim, uma “boa ideia” sempre depende de critérios para análise, adaptação e implementação.
Obras invisíveis não dão votos
Por serem “invisíveis” e caros, os serviços de infraestrutura acabam sendo preteridos em muitas cidades brasileiras. De acordo com o Censo de 2022, 24,3% da população brasileira, ou cerca de 49 milhões de pessoas, não têm acesso a uma estrutura adequada de saneamento básico.
Segundo o IBGE, o Brasil possui 5.571 municípios. A desigualdade regional no acesso ao saneamento básico também é evidente: nos 20 municípios mais desenvolvidos, 95,52% da população tem acesso a saneamento, mas nos 20 municípios mais pobres, o percentual é de apenas 31,78%.
Para concluir, o panorama é muito diverso: há ratos comendo restos de pizza nos túneis do metrô de Nova York, turistas explorando cavernas na Capadócia ou catacumbas em Roma, inundações urbanas causadas por falta de planejamento, e muita gente sem serviços básicos de água tratada e saneamento. E há soluções para todos esses problemas, se existir planejamento adequado e seriedade administrativa.
As cidades que a gente não vê influenciam - e muito - a cidade que a gente vê.
Enquanto algumas cidades ganham manchetes como cenários de problemas, outras se transformam em referência e brilham por efeito de uma outra força invisível, mas extremamente importante: o potencial de cada um que investe a cada dia todo o sentido de sua vida em sua cidade. É essa força que faz com que algumas cidades acabem visivelmente pertencendo à humanidade como um todo ao longo do tempo.