Urbanismo Moderno

Jonas Rabinovitch
Na coluna 'No Planeta das Cidades', Jonas Rabinovitch reflete sobre o que aprendeu convivendo com o pior e o melhor da arquitetura, do urbanismo e das artes pelo mundo afora. Arquiteto urbanista, trabalhou por 30 anos em Nova York como Conselheiro Sênior da ONU para inovação e gestão pública e foi convidado para atuar em mais de 80 países. Antes disso, foi assessor de Jaime Lerner no planejamento de Curitiba (PR).
No Planeta das Cidades
Planejamento Urbano: Uma História de 4.600 Anos

Times Square, Nova York | Imagem: Donyc.
A cidade de Harappa foi meticulosamente planejada no vale do rio Indus, na região do Punjab, hoje dividida entre Índia e Paquistão. O planejamento urbano incluía abastecimento de água, um sofisticado sistema de drenagem e construções padronizadas com tijolos. Harappa teve ainda o incrível mérito de ter inventado a quadra (ou quarteirão), a partir de um desenho quadriculado de ruas paralelas. Isso aconteceu há 4.600 anos.

Você provavelmente nunca ouviu falar em uma das primeiras cidades modernas planejadas no Brasil: Nossa Senhora da Boa Viagem do Curral del Rey. O plano foi feito em 1897 para mudar a capital de Ouro Preto para a cidade que se chamou Belo Horizonte a partir de 1901. A realidade tornou o plano original rapidamente obsoleto, principalmente a partir da invenção do carro. Curiosamente, o plano de Harappa e o plano de Belo Horizonte são fisicamente parecidos. O que aconteceu nesses quatro milênios de diferença?

Por um lado, há um consenso de que qualquer morador urbano médio hoje tem um padrão de vida bem melhor do que os reis tinham na antiguidade. Não havia antibióticos, chuveiros, pasta de dente, televisão, eletrodomésticos, telefone, computador, e um supermercado em cada esquina. A expectativa média de vida aumentou de 25 para mais de 70 anos, principalmente a partir da revolução industrial. Por outro lado, foi a insalubridade existente nas cidades a partir da industrialização que motivou a criação do urbanismo moderno.
Como surgiu o Planejamento Urbano Moderno?

Houve a necessidade de resolver desafios como saneamento básico, superlotação e saúde pública trazidos pela industrialização, motivando o planejamento das cidades. Alguns exemplos de eventos internacionais que marcaram essa história incluem a Primeira Conferência sobre Planejamento Urbano, em 1909, em Washington D.C. e o plano para Chicago, também em 1909, que visava melhorar a funcionalidade e a estética da cidade.
Na Inglaterra, o Movimento das Cidades-Jardins, baseado em ideias de Ebenezer Howard, enfatizou o equilíbrio entre a vida urbana e rural, resultando na criação de 32 novas cidades planejadas (new towns). A maioria delas falhou porque a questão do emprego não foi bem resolvida. Apesar disso, algumas new towns como Milton Keynes e Harlow existem até hoje.

fato é que o planejamento urbano ficou reconhecido como uma função básica da administração pública. Mas até que ponto o planejamento funciona?
Tendências atuais do Urbanismo
O maior desafio do planejamento moderno é atribuir uma função social ao direito de propriedade. Em suma: o dono de um pedaço de terra não pode fazer o que quiser, porque a cidade como um todo é mais importante.
O urbanismo contemporâneo é usualmente definido por maravilhosas “palavras da moda”: sustentabilidade, participação comunitária, cidades inteligentes, promoção de justiça social. Por exemplo, o Estatuto da Cidade, promulgado em 2001, tornou obrigatórios os planos diretores para cidades brasileiras com mais de 20.000 habitantes, com três objetivos:
1) “Promover a gestão urbana democrática, incentivando a participação da comunidade nas decisões de desenvolvimento urbano”.
2) “Reduzir as desigualdades socioespaciais com acesso à infraestrutura e serviços para comunidades marginalizadas”.
3) “Promover o desenvolvimento urbano sustentável integrando o meio ambiente ao planejamento para criar cidades mais habitáveis e resilientes”.
Até 2010, mais de 1.500 planos diretores urbanos foram adotados no Brasil. Apesar do Estatuto da Cidade ter impulsionado o desenvolvimento desses planos obrigatórios, muitos foram abandonados ou modificados devido a diversas pressões. Um quarto de século depois, o resultado é insignificante.
O problema não é falta de profissionais qualificados, mas talvez o excesso de expectativas contidas em um documento que, em última análise, não tem o poder de controlar tantas variáveis políticas, econômicas e sociais ao longo do tempo.
Além disso, concordo com os que criticam planos diretores (Master Planning) por sua metodologia rígida e lenta. A chave está em adotar uma abordagem mais flexível e adaptável que reconheça a natureza dinâmica das cidades, principalmente em países em desenvolvimento. Por exemplo, o Programa de Gestão Urbana da ONU (1986-2006) no qual participei por vários anos, gerou 140 Planos de Ação (Action Planning) com foco em ações específicas na África, Ásia e América Latina. Nem todos funcionaram, os resultados foram mistos, mas deixaram um legado importante na resolução técnica de problemas específicos.
Perguntei à Inteligência Artificial (Perplexity): e a corrupção atrapalha? A resposta: Sim, a corrupção impede significativamente o bom planejamento urbano. A corrupção leva a decisões visando ganhos privados em vez do bem público, gera um desenvolvimento urbano distorcido que causa estouros orçamentários, infraestrutura de baixa qualidade e, por fim, a um declínio na qualidade de vida geral dos moradores.
Palavras da moda
Em 2017, o vereador Tobi Nussbaum e a urbanista Miranda Spessot, de Ottawa, no Canadá, escreveram um artigo criticando o excesso de “palavras da moda” (buzzwords) no planejamento contemporâneo. Em seu lugar, propuseram cinco palavras fora de moda, todas começando com a letra “i”, explicando os desafios para fazer um plano funcionar:
A) Influência: o impacto de interesses específicos (políticos, construtores, especuladores), o que pode levar a planos em detrimento do bem público mais amplo.
B) Inércia: a resistência à mudança ou a tendência a manter o status quo, mesmo quando novas abordagens podem ser benéficas.
C) Ignorância: falta de conhecimento sobre os processos e impactos potenciais do planejamento, tanto entre o público quanto entre os tomadores de decisão.
D) Inconsistência: falta de coerência nas políticas, regulamentações ou implementação do planejamento, o que pode gerar confusão e impedir uma visão comum.
E) Interferência: fatores ou intervenções externas que interrompem o processo de planejamento, como pressões políticas ou obstáculos burocráticos.
Segundo eles, ao abordar esses cinco fatores, os planejadores urbanos podem trabalhar em prol de um desenvolvimento urbano mais eficaz e sustentável. Talvez eles tenham se esquecido que planejadores urbanos não têm poder para controlar tudo isso, mesmo no Canadá?
Não me entendam mal, não quero criticar ninguém. Mesmo que o planejamento se limite a uma função puramente normativa - por meio de um código de obras, por exemplo - o ato de planejar será sempre importante, porque uma cidade nunca está pronta.
O futuro do Urbanismo

As cidades do futuro serão melhores que as cidades de hoje? As tendências recentes de planejamento urbano concentram-se na sustentabilidade, na integração de tecnologias inteligentes e na criação de cidades mais equitativas e resilientes. Essas tendências abrangem infraestrutura verde, soluções de mobilidade, moradia acessível e gestão urbana baseada em dados.
Até surgiram novas disciplinas como o “neuro-urbanismo” (uso da neurociência para criar ambientes urbanos que promovam o bem-estar e reduzam o estresse fomentando a interação social), o gerenciamento de tráfego com tecnologia de IA e a criação de “gêmeos digitais” (réplicas virtuais de ambientes urbanos) para simular e otimizar possíveis soluções para fluxo de tráfego e consumo de energia. Spoiler: o cinismo é opcional, porém improdutivo.
Independentemente do futuro do planejamento, eu sempre vou fazer três perguntas:
1) Quem está sendo beneficiado e quem está sendo prejudicado pelas propostas de um plano?
2) Como as informações geradas pela implementação do plano, ou pela tecnologia, vão orientar o prefeito e demais autoridades a tomar decisões?
3) As propostas do plano refletem um consenso real, uma visão de cima para baixo ou apenas uma boa escolha de palavras com redação inteligente?
Enfim, o resultado do planejamento não deveria ser apenas uma coleção de mapas pintados ou um texto bem redigido de forma conciliatória, mas o início de um processo contínuo de tentar concretizar uma realidade um pouco melhor.
Há sempre razões óbvias pelas quais o planejamento urbano às vezes não funciona. O fato é que ninguém é tolo.
Não esqueçam: burrices óbvias frequentemente escondem espertezas inconfessáveis.