Acupuntura Urbana

Instituto Jaime Lerner

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Lentes positivas para pensar a cidade como solução pelo olhar do Instituto Jaime Lerner.

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Planejamento urbano em tempos complexos: e se a simpliCIDADE for o caminho?

27/08/2025 10:15
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Orla Guaiba, Curitiba | Imagem: Arthur Cordeiro

O tema da coluna passada foi a “complexidade” e algumas abordagens no campo da filosofia e das ciências em tentar nos ajudar a navegar tempos tão incertos. Seu trecho final, contudo, traz a reflexão do historiador Yuval Noah Harari, de que “cada era tem seu próprio conjunto peculiar de problemas e oportunidades,
muitas vezes invisíveis aos contemporâneos, mas claros em retrospectiva”. O autor nos provoca a considerar que nos falta a perspectiva do tempo para avaliar aquilo que o que o filósofo espanhol Ortega Y Gasset já havia postulado em Meditaciones del Quijote: “Eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela
não salvo a mim
”.
Nos encontramos, assim, em uma “dupla sinuca”… Nos falta clareza para interpretar nossa circunstância, mas, nossa “salvação” só pode se dar pelo fazer, pelo agir consciente como indivíduo autêntico nesse espaço de sombras.
E como isso se reflete em nossas cidades, nesse artefato que criamos para mediar o eu e o nosso (circunstâncias)?

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De muitas formas. Mas, talvez, uma das mais importantes seja pelo exercício responsável do atributo da coragem. E a coragem, já diz a sabedoria popular, não é a ausência do medo, mas a persistência apesar do medo, a ousadia de enfrentá-lo. No vocabulário de Jaime Lerner, essa ousadia se traduz na “acupuntura urbana”.
A acupuntura urbana é uma ferramenta que nos permite superar a paralisia gerada pelo medo, que é alimentado pelas incertezas. E esse temor, na gestão urbana, se expressa, por exemplo, em amarras burocráticas quase asfixiantes; em diagnósticos infinitos que se esvaziam quando traduzidos em proposições; em leis ambíguas que admitem interpretações antagônicas sobre uma mesma situação. Evidente que a burocracia, diagnósticos e leis são necessários para a organização do viver coletivo. Contudo, esses instrumentos não podem se transformar em um escudo por detrás do qual nos escondemos por covardia. A Rua das Flores em Curitiba, o Parque da Orla do Guaíba em Porto Alegre, as Bibliotecas de Medellín são exemplos do poder de transformação que essas “agulhadas” são capazes de realizar no organismo urbano e na relação dos moradores com sua cidade.
Além da Acupuntura Urbana, outra premissa abraçada por Lerner, e que caminha de mãos dadas com a acupuntura, é a simplicidade. Não se trata de se esquivar da complexidade do mundo, tampouco da necessidade de cada vez mais aprofundar o conhecimento sobre os fenômenos que nos cercam. Contudo, ainda que haja muito que não saibamos, há, sim, um tanto razoável que sabemos. E isso que já sabemos pode fundamentar a nossa ação. É nesse sentido
que entra a frase do Jaime que referenciei na coluna anterior, de que “a cidade não é tão complexa quanto os “vendedores de complexidade” querem nos fazer crer.” É uma questão de ênfase: focar no que é sabido nos permite agir. Lerner sempre colocava que na raiz de uma grande transformação há uma pequena
transformação. O essencial é iniciar o processo, fazer acontecer, e depois investir o tempo e os recursos necessários para seguir com o seu aperfeiçoamento. Começar criando elementos simples, fáceis de serem implementados, e estes serão os embriões de sistemas mais complexos no futuro, como bem ilustra a rede de transporte público de Curitiba.
Rua das Flores, Curitiba. | Imagem: Lina Faria
Rua das Flores, Curitiba. | Imagem: Lina Faria
Essa abordagem pela simplicidade pode nos ajudar também a melhor equacionar a relação entre o meio natural e o urbano. Podemos ainda não saber exatamente todos os mecanismos sutis que fazem a chuva acontecer, mas sabemos que precisamos de maneiras de lidar com ela quando ocorre, e os rios são os caminhos naturais da drenagem. Preservar seus cursos, proteger suas margens, manter condições de permeabilidade em suas bacias são estratégias “simples” e eficazes ao alcance da maioria das cidades. Se conseguimos apropriar parte desses espaços para o lazer, o esporte, o convívio e o contato com a natureza da população, os benefícios são multiplicados.
A trilha da simplicidade diminui as nossas incertezas, o que nos torna menos vulneráveis no exercício da coragem. Aumentam, assim, na relação orteguiana do eu e minha circunstância, as chances de que nossa “salvação” ocorra… É assim que podemos transformar inércia em oportunidade de cidades melhores!
Por Ariadne dos Santos Daher