Segundo os Correios, há cerca de 850 mil ruas no Brasil. Qual o nome de rua mais comum no país? Muitos pensam que seria o nome de algum político, militar ou mesmo de algum santo. Curiosamente, o nome mais usado no Brasil e nos EUA é “Rua Dois”, possivelmente devido a muitos bairros e loteamentos novos em áreas periféricas em cidades pequenas e médias. Por que então não seria “Rua Um”? Não há uma explicação clara, mas talvez porque existam muitas “Ruas Principais”. No Paraná, por exemplo, o nome mais comum é “Rua Principal”.
À medida que as cidades cresciam, uma rua central tornou-se o principal núcleo de atividades comerciais e sociais, frequentemente repleto de lojas, empresas, cafés, e pontos de encontro. Essa rua central, frequentemente chamada de Rua Principal, tornou-se sinônimo do coração da cidade. A visão de Walt Disney para a Rua Principal (Main Street, USA), na Disneylândia, foi inspirada em memórias afetivas e no charme de sua cidade natal, Marceline, em Missouri, e nas pequenas cidades americanas do início do século XX.

Nas cidades gregas, a ágora, ou espaço público, servia como um ponto central para atividades sociais, políticas e comerciais. As cidades romanas tinham duas ruas perpendiculares principais: o cardo maximus (norte-sul) e o decumanus maximus (leste-oeste). Esses eixos se cruzavam perto do centro da cidade, frequentemente no fórum, que era o coração da vida urbana no Império Romano.

Mas a ideia de "Rua Principal", como entendemos hoje, nem sempre esteve presente na história do planejamento urbano. Embora áreas centrais de reunião e comércio sempre tenham existido, o conceito de "Rua Principal" como um elemento distinto de design urbano, incorporando áreas de pedestres na era do automóvel e certos ideais sociais e econômicos, surgiu mais tarde.
Mais recentemente, duas tendências ameaçam modificar a rua tradicional:
1) Rodoviarização das cidades com a construção de viadutos, autoestradas, shopping centers.
2) Crescimento do comércio online (e-comércio).
Como o planejamento urbano reagiu e está reagindo a isso?
A Carta de Atenas
A Carta de Atenas, um documento de grande influência no planejamento urbano do século XX, particularmente no período pós-Segunda Guerra Mundial, trouxe mudanças significativas, mas também enfrentou críticas por trazer certos problemas de planejamento. Algumas questões importantes associadas à sua implementação incluem um zoneamento excessivo, com separação rigorosa entre funções urbanas (moradia, trabalho, comércio, lazer, transporte) em zonas distintas. Esse zoneamento funcional, embora tentasse ser eficiente, levava à falta de áreas de uso misto e à redução de oportunidades de interação social e vida urbana espontânea, menor interação entre as pessoas, e aumento das distâncias de viagem – já que a separação rígida das zonas de trabalho e residencial frequentemente resultava em longos deslocamentos, impactando a qualidade de vida.
Da Rua Tradicional ao Shopping Mall
No Brasil, as cidades cresceram refletindo o modelo português e espanhol de colonização. No Brasil colonial, as vilas começaram após considerações de defesa contra índios e piratas. Depois vieram as instalações administrativas e religiosas como a casa de câmara e cadeia, igrejas, conventos e o cartório. Mas foi o comércio varejista que sempre deu alma e vida às cidades. Essa tradição permaneceu por vários séculos, até a chegada da industrialização que urbanizou o Brasil. Os imigrantes no início do século XX deram um colorido cultural e diverso às nossas cidades. Primeiro vieram os ambulantes, seguidos do português da padaria, o chinês da pastelaria, o italiano da pizzaria e outros.

Nos EUA, o período pós-Segunda Guerra Mundial testemunhou um rápido crescimento nos subúrbios e a adoção generalizada de automóveis, o que criou uma demanda por shopping centers convenientes, longe dos centros urbanos congestionados. O Southdale Center, projetado pelo arquiteto Victor Gruen em Edina, Minnesota, em 1956, foi revolucionário para a época, apresentando um ambiente totalmente fechado e climatizado, um átrio central e lojas de departamento com âncoras. Esse projeto influenciou a construção subsequente de shopping centers por décadas.

No Brasil, o setor de shoppings teve algumas ondas de crescimento desde o primeiro empreendimento, o Shopping do Méier, no Rio de Janeiro, e o Shopping Iguatemi, em São Paulo, ambos na década de 1960. A década de 1980 foi marcada pelo surgimento de shoppings regionais, e a década de 1990 trouxe um crescimento exponencial, consolidando o setor no país com o surgimento de empreendimentos regionais, abertura econômica e maior disponibilidade de crédito.
O Shopping Center e o Comércio Online vão acabar com a Rua Tradicional?
A memória de uma cidade se reflete em suas ruas. Mas será que o crescimento das compras online são uma sentença de morte para a rua tradicional? As vendas globais no varejo online aumentaram significativamente na última década. Em 2014, as vendas foram de US$ 1,34 trilhão; em 2024 foram de US$ 6,33 trilhões. Isso representa um aumento de quase cinco vezes em uma década, com um crescimento inesperado impulsionado pela pandemia de COVID-19 em 2020.

O comércio eletrônico, ou e-commerce, impactou significativamente o setor varejista físico, levando à redução do fluxo de pessoas, ao fechamento de lojas e a uma mudança na demanda por imóveis comerciais. Uma população cada vez mais jovem de consumidores navega online antes de visitar as lojas, impactando o tráfego de clientes. Além das mudanças no perfil do consumidor, também há mudanças na arquitetura e planejamento de interiores.
Enquanto alguns varejistas estão reduzindo o tamanho ou fechando lojas físicas, outros estão se adaptando, adotando o comércio eletrônico, incorporando estratégias híbridas de "showrooming" (também chamado de “Omnicanal”) ou investindo em lojas de menor porte.
Nos EUA, já há vários exemplos de varejistas usando “Showroom Híbrido”:
- Sephora (maquiagem, perfumes): Utiliza tecnologias como provadores virtuais e quiosques digitais na loja para aprimorar a experiência do cliente.
- Nike (artigos esportivos): Oferece espaços interativos como quadras de basquete e esteiras para incentivar o engajamento com os produtos.
- Best Buy (eletrônicos): Oferece verificação de estoque online e retirada na loja, utilizando suas lojas físicas como centros de distribuição.
- Target (loja de departamentos): Integra o estoque online e o estoque físico obtendo mais eficiência para o cliente.
- Warby Parker (óculos): Começou como um negócio exclusivamente online, mas abriu showrooms físicos onde os clientes podem experimentar os óculos antes de fazer o pedido online.
O trabalho do arquiteto e do urbanista se expande pelo menos de duas maneiras:
1) No desenho inovador das lojas, incorporando experiências virtuais para experimentar ou testar produtos.
2) No planejamento de espaços industriais e logísticos, especialmente perto de centros urbanos, para apoiar o atendimento de pedidos online e a entrega no “último quilômetro” – do depósito menor até a casa do comprador.
Apocalipse do Varejo ou Revitalização do Mercado?
Na última década, cerca de dezenas de milhares de lojas físicas fecharam em todo o mundo. Somente nos EUA, cerca de 9.700 lojas fecharam em 2020. Essa tendência é influenciada por fatores como o crescimento do comércio eletrônico, o impacto da pandemia e os desafios econômicos. No Brasil, grandes redes como Forever 21, Fnac, Walmart, Lush, Polishop e Ponto fecharam totalmente ou tiveram significativo fechamento de lojas físicas, especialmente em shoppings centers. Mas nem todos concordam que exista um "apocalipse do varejo". Alguns economistas e especialistas afirmam que os recentes fechamentos do varejo são uma “correção do mercado”, sugerindo que a ideia do “apocalipse” seria enganosa.
Por outro lado, a revista Newsweek chegou a declarar que o atual formato de shopping center fechado teria se tornado obsoleto em 2008. O desenho dos shoppings centers tem se beneficiado da criatividade de muitos arquitetos para sua revitalização. Nos EUA já há um processo de reinvenção do shopping center tradicional.
Robótica e Software - Algumas redes de varejo estão testando robôs e outras tecnologias para reduzir custos ou melhorar a experiência do cliente. A IKEA se tornou uma das primeiras varejistas a usar o ARKit, um software da Apple, para desenvolver um aplicativo de realidade aumentada que permite visualizar imagens 3D dos produtos ambientados em uma sala, cozinha ou banheiro. A Sephora instalou espelhos inteligentes que usam realidade aumentada para permitir que os clientes experimentem maquiagem. O Walmart automatizou alguns aspectos de sua cadeia de suprimentos. A Kohl's reduziu o tamanho de algumas lojas de 8.400 para 3.200 metros quadrados e usa robôs para ajudar a limpar e abastecer as prateleiras. A Lowe's tem usado o LowesBot para ajudar os clientes a encontrarem itens. Executivos da empresa afirmam que robôs reduzem custos e melhoram a eficiência, mas os funcionários relatam que não gostam de trabalhar com robôs.

Educação e Uso Misto - A remodelação pode envolver a mudança do uso comercial para uso educacional ou misto. O Coral Springs Mall na Flórida foi transformado em escola através de uma parceria público-privada. O Eastgate Metroplex em Tulsa, Oklahoma, foi revitalizado como espaço misto, incluindo escola e centro comunitário.
Data Centers - Um outro tipo de revitalização foi a transformação de shopping centers em locais para serviços online, com grande parte do espaço ocupado por operadoras de telecomunicações, operadoras de data center e provedores de serviços de internet como no Allegheny Center Mall, no centro de Pittsburgh, Pensilvânia.
Uso Religioso - Outro uso para um antigo shopping center pode ser visto em Lexington, Kentucky, onde o Lexington Mall foi parcialmente demolido e convertido em um centro de culto via satélite para uma mega igreja local.
Lazer e Centros Comunitários – A conversão de um shopping center em uma área a céu aberto de uso misto pode implicar na demolição de partes ou de todo o antigo shopping center. Um exemplo disso pode ser visto em Fairfax, Virgínia, onde o antigo Springfield Mall foi convertido no Springfield Town Center, um empreendimento de uso misto que inclui um cinema com 12 salas, lojas e restaurantes com mesas e entradas ao ar livre. Em outro exemplo, em Boardman, Ohio, o antigo prédio da Sears foi demolido para construir o DeBartolo Commons, um local de encontro da comunidade para festivais, recreação e vida noturna.
Centros de Distribuição - A Amazon, FedEx, DHL, UPS e o Serviço Postal dos Estados Unidos já adquiriram alguns shoppings falidos e os converteram em centros de distribuição para compras online.
Uso Médico - Alguns grandes sistemas de saúde, como o Vanderbilt Health e o University of Rochester (UR) Health, converteram vários shoppings decadentes em novos "shoppings de saúde" ou "shoppings para medicina". Os amplos espaços permitem a fácil conversão de atividades que exigem muito espaço, como centros cirúrgicos ambulatoriais, enquanto as múltiplas vitrines facilitam a compra em um único local para todas as necessidades relacionadas à saúde.

Conclusão: o Futuro Será Híbrido e Versátil
Ruas tradicionais costumam ter um senso mais forte de comunidade e identidade local, o que é valorizado pelos consumidores. Ao mesmo tempo, essas ruas comerciais estão se modificando e tornando-se mais especializadas, oferecendo produtos, serviços e experiências únicas que não podem ser replicadas online. Muitas cidades estão investindo na revitalização de suas áreas comerciais tradicionais com zonas para pedestres, feiras, exposições de arte e eventos comunitários.
O futuro trará uma mistura de compras online, varejo em shoppings e ruas tradicionais vibrantes, cada uma desempenhando um papel diferente, os quais acabam complementando o ecossistema varejista geral, iniciando um novo ciclo de desafios e oportunidades profissionais para a arquitetura e o design urbano.
Jonas Rabinovitch.