Talvez vocês conheçam o ator Tom Hanks. Em uma de suas interpretações marcantes, ele fez o papel do astronauta Jim Lovell, o comandante da missão lunar Apollo 13, em 1970. Depois de uma catastrófica explosão no tanque de oxigênio da nave, o comandante se comunica com a base, na maior calma:
“Houston, nós temos um problema.”
O objetivo da missão mudou. A prioridade agora seria fazer o oxigênio durar por 4 dias para trazer os três astronautas de volta à Terra. O controle da missão era feito em Houston, no Centro de Naves Espaciais Tripuladas - hoje chamado de NASA Johnson Space Center - que teve um papel crucial na solução do problema.
Agora, em 2025, um problema médico me trouxe a Houston. A cidade abriga o maior centro médico do mundo, o Texas Medical Center (TMC), uma área que inclui mais de 60 instituições médicas, incluindo hospitais, instituições de pesquisa e centros acadêmicos.
Dizem que nunca há uma segunda chance para se causar uma boa primeira impressão. Houston falhou. Fiquei com uma péssima primeira impressão.
É uma cidade-estrada. Enorme. Rodoviarista. Muitos viadutos, geralmente com 5 ou 6 pistas em cada direção. Não se vê gente andando na rua. Houston é uma cidade feita para carros. Apenas 57% das ruas têm calçadas, das quais 39% com problemas de manutenção.
É uma cidade-estrada. Enorme. Rodoviarista. Muitos viadutos, geralmente com 5 ou 6 pistas em cada direção. Não se vê gente andando na rua. Houston é uma cidade feita para carros. Apenas 57% das ruas têm calçadas, das quais 39% com problemas de manutenção.

Depois de Nova York, Los Angeles e Chicago, Houston é a quarta maior cidade americana por população. Curiosamente, as quatro maiores cidades americanas por área ficam no Alaska.
O automóvel já matou mais do que a Segunda Guerra Mundial
Um estudo global feito em 2024 mostra que os automóveis foram responsáveis por 60 a 80 milhões de mortes desde a sua invenção. No entanto, há lugares onde não se consegue viver sem carro. No fundo, tudo depende do nível de dependência e da forma como usamos o carro.
Houston me lembrou o livro “A Morte e a Vida das Grandes Cidades Americanas", de Jane Jacobs, que li há várias décadas atrás. Jacobs foi uma conhecida urbanista americana, a qual argumentou em 1960 que a diversidade, a mistura de usos (residencial, recreativo, comercial: lojas, bares, restaurantes, cinemas etc.), e ruas de pedestres são cruciais para cidades vibrantes, seguras e prósperas. A visão de Jacobs contrastava com o planejamento urbano racionalista da década de 50, defendido por Le Corbusier, Robert Moses e outros, o qual poderia levar ao declínio das cidades.
O maior embate entre Jane Jacobs e Robert Moses aconteceu em Nova York, em 1960. Moses queria uma grande rodovia (Lower Manhattan Expressway) cortando o Greenwich Village e destruindo boa parte da Washington Square, uma praça cheia de vida com o arco do triunfo que existe até hoje, marcando o início da Quinta Avenida. Moses era Secretário Municipal com fortes conexões políticas. Foi uma luta entre o planejamento voltado para a comunidade e o planejamento autoritário centrado no carro e em rodovias. Os esforços populares de Jacobs, apoiados por moradores e ativistas locais, conseguiram interromper a construção da rodovia no sul de Manhattan e preservaram o espírito de Greenwich Village como conhecemos hoje.

O conflito político entre Jacobs e Moses se tornou um campo de batalha simbólico para o futuro do planejamento urbano, representando um choque fundamental de ideias sobre o propósito e o design das cidades. A visão comunitária pode ter vencido no Greenwich Village, mas a visão rodoviarista prevaleceu em muitas outras cidades americanas como Houston, Dallas e pelo mundo afora.
Quem conhece o Rio de Janeiro sabe que a cidade contém essas duas visões: enquanto o crescimento do centro do Rio foi influenciado pelo urbanismo europeu, a expansão do Rio na direção da Barra da Tijuca foi influenciada pelo rodoviarismo americano.
Temos que considerar ainda a pressão de três poderosos “lobbies” que influenciaram o crescimento das cidades a partir dos anos 60: indústria automobilística, indústria de construção de estradas e indústria do petróleo.
Engenharia social ou ingenuidade social?
Pessoalmente, com todo o respeito, acho que a visão de Jane Jacobs certamente reflete a sua época, mas hoje seria considerada um tanto ingênua. Por exemplo, Jane Jacobs via as calçadas como espaços públicos essenciais para manter a ordem e a segurança do bairro, não apenas para passagem de pedestres, mas como um espaço onde as pessoas interagem e os "olhos dos vizinhos na rua garantiriam a segurança”. Hoje as calçadas de muitos bairros em muitas cidades são tomadas por gangues, moradores de ruas, usuários de drogas e exploradores da caridade pública. As estatísticas confirmam que a vida urbana nos anos 50 e 60 era sem dúvida mais segura. A partir dos anos 70, a política de “Guerra às Drogas” de Nixon nos EUA e a gradual deterioração social e econômica no centro das grandes cidades já indicavam outra realidade local e global.
A virada do milênio parece ter confirmado que as cidades não podem mais ser vistas apenas como expressão de uma realidade física, mas sim como um todo integrado, incluindo aspectos ambientais, econômicos e sociais. Complementando o renascimento de uma visão urbana mais humanizada na década de 60, Nova York também teve sua crise de insegurança urbana a partir da década de 70, mas soube reagir.
Nos anos 80, a cidade era atormentada por crimes: assassinatos, assaltos, tráfico de drogas, roubos e furtos de carros. Lembro que quando fui morar em Nova York, há pouco mais de 30 anos, eu ainda via cartazes nas janelas dos carros dizendo: “Não tenho rádio no carro”. Isso porque os bandidos quebravam janelas de carros para roubar os rádios e comprar drogas, e a polícia não fazia nada.
Ao contrário dos problemas de crimes em muitas cidades, os de Nova York não se limitavam a apenas alguns bairros periféricos, mas tomavam conta de toda a cidade, incluindo áreas centrais como a Rua 42 e a estação Grand Central.
Naquela época, enquanto a Prefeitura ingenuamente estudava modelos de fogareiros e chuveiros portáteis para moradores de rua, o Bryant Park – uma grande praça central ao lado da biblioteca pública de Nova York - se transformava em um mercado de drogas a céu aberto, onde as pessoas tinham medo de entrar.
A segurança de NYC melhorou por meio de políticas públicas, incluindo policiamento agressivo contra crimes menores, tolerância zero para pequenos furtos e tráfico de drogas, investimento em programas sociais e implementação de estratégias como “policiamento de janelas quebradas", o que levou a um declínio significativo nas taxas de criminalidade, incluindo de crimes violentos. Isso aconteceu ao longo de muitos anos e não foi um processo fácil. Esse tipo de resposta da Prefeitura exige forte vontade política para organizar a colaboração entre agências de segurança pública, de saúde e de serviços sociais para reduzir o narcotráfico que resulta em violência e crimes.
Por exemplo, no caso do Rio de Janeiro não precisamos de nenhum especialista em violência urbana para entender que há uma relação cruel entre candidatos políticos pedirem permissão de traficantes para entrar em suas comunidades para pedir votos, a aparente tolerância das autoridades com pivetes praticando pequenos crimes pelas ruas e a decadência generalizada da cidade.

Nossas cidades têm janelas quebradas
Em 1982, os cientistas sociais James Q. Wilson e George Kelling escreveram um artigo para a revista The Atlantic Monthly com o título "Janelas Quebradas". Eles mostraram que qualquer sinal visível de desordem e negligência, como janelas quebradas em alguns prédios, rapidamente encorajam crimes mais sérios e um comportamento antissocial. Qual a importância disso? Fica patente que pequenos crimes seguidos pelo descaso do poder público contribuem muito mais do que se pensa para a atual escalada de violência urbana que assola nossas cidades.
Em 1969 um psicólogo americano chamado Philip Zimbardo fez uma experiência interessante testando a teoria das janelas quebradas. Ele colocou um carro conversível sem placas em uma rua deserta no Bronx, em uma área “pobre” de Nova York, e outro em uma rua de Palo Alto, na Califórnia, uma área “mais rica”. O carro no Bronx foi atacado por "vândalos" dez minutos após seu "abandono". Os primeiros a chegar foram uma família que roubou o radiador e a bateria. Em 24 horas, praticamente tudo de valor havia sido roubado do carro. Depois começou a destruição aleatória: janelas foram quebradas, partes arrancadas, o estofamento rasgado. Zimbardo observou que muitos "vândalos" eram brancos, talvez para evitar qualquer estereótipo racista. O carro em Palo Alto ficou ileso por mais de uma semana. Então Zimbardo quebrou parte dele com uma marreta. Logo, em poucas horas, o carro foi completamente destruído.
Ou seja, o vandalismo pode ocorrer em qualquer lugar uma vez que o senso de consideração mútua e as obrigações de civilidade são reduzidas pela impressão de que "ninguém se importa". Isso pode se aplicar a um carro abandonado ou à administração de uma cidade inteira. Por isso é importante consertar qualquer janela quebrada, limpar pichações, e policiar pequenos furtos assim que começam a acontecer. O descaso é contagioso.

O vizinho cheio de boas intenções que tolera uma pichação em um prédio, acha normal um pequeno furto ou alimenta o morador de rua que usa aquela mesma rua como banheiro público, pode estar sem saber iniciando um círculo vicioso que contribui para a gradual deterioração de sua cidade.
Qual o futuro do planejamento urbano?
Essa é uma pergunta fácil de se fazer, mas de difícil resposta. Seria muita arrogância de minha parte tentar acomodar tantas possibilidades em algumas frases. Um projeto de arquitetura geralmente termina com sua construção. Mas o planejamento de uma cidade não termina nunca. Não existe cidade “pronta”, simplesmente porque a realidade urbana é dinâmica, incluindo conflitos políticos diários. Tanto Robert Moses com a sua visão rodoviarista ou Jane Jacobs com sua visão comunitária achavam que estavam fazendo o melhor por Nova York, apesar de terem pontos de vista totalmente diferentes. Enquanto alguns autores escreviam sobre a importância de ruas e calçadas, cidades inteiras foram construídas priorizando carros, onde pessoas e bicicletas nem conseguem circular.
Não há uma abordagem técnica que possa automaticamente transformar uma cidade desenhada para automóveis em uma cidade voltada para pedestres. Há até uma disciplina acadêmica e uma práxis sobre "cidades caminháveis" (walkable cities), com suas limitações.
Não há uma abordagem técnica que possa automaticamente transformar uma cidade desenhada para automóveis em uma cidade voltada para pedestres. Há até uma disciplina acadêmica e uma práxis sobre "cidades caminháveis" (walkable cities), com suas limitações.
Talvez seja possível trabalhar de forma descentralizada para melhoria de algumas vizinhanças. Em 2020 a prefeitura de Houston elaborou em parceria com a Shell um plano chamado “Houston Resiliente” com foco em uma cidade ambientalmente correta, segura, inclusiva e empreendedora. Houve dificuldades para implementar o plano de forma homogênea em todas as vizinhanças e o sucesso foi fraco e parcial. Isso é comum em muitas cidades pelo mundo afora. Ao mesmo tempo, no lado positivo, Houston é uma cidade culturalmente diversificada, com excelentes museus e galerias de arte.
Em conclusão, não há uma metodologia fixa para se conseguir a melhor cidade. Estamos trilhando a fronteira entre ciência e arte. O planejamento urbano talvez seja a mais artística das ciências ou a mais científica das artes. O constante processo de planejar qualquer cidade requer uma visão humana centrada em pessoas e não em carros, vizinhanças diversificadas, uma gestão municipal que coordene várias agências complementando iniciativas para fortalecer uma cidade socialmente justa, uma economia empreendedora e vibrante, um meio ambiente preservado e uma qualidade de vida que contemple um senso de comunidade e segurança.
Jonas Rabinovitch