Urbanismo

As calçadas de petit-pavê de Curitiba são obra dessas mãos

Mariana Domakoski*
09/08/2016 22:31
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Foto: Fernando Zequinão | Gazeta do Povo

Para o calceteiro Valmir Jorge Gomes, de 60 anos, andar olhando para o chão faz parte do ofício que ele aprimora desde menino: fazer calçadas. “Elas são um espelho da cidade”, reflete. Não é à toa que hoje ele é um dos poucos que conhece a fundo a técnica dos mosaicos portugueses com basalto e calcário, trazida para cá por volta de 1920 e preservada até hoje sob nossos pés. Você pode até ter passado sobre uma de suas obras, vistas ao lado de várias ruas de Curitiba.
Petit-pavé ornamentado com pinhões na Rua XV. Foto: Antônio More/Gazeta do Povo
Petit-pavé ornamentado com pinhões na Rua XV. Foto: Antônio More/Gazeta do Povo
E como um defensor do trabalho bem feito, ele reclama quando a minúcia é deixada de lado. “Colocam um Dior no edifício e um chinelão na calçada em frente”, caçoa. Para se ter uma ideia da complexidade do petit-pavé, eis aqui alguns números: cada m² bem feito precisa de 250 a 300 pedras, além da mistura de areia com cimento para dar a base. Isso resulta em mais ou menos 11 m² de calçada em um dia de trabalho. Mas tem quem deixe o capricho de lado e faça 25 m² , com 180 pedrinhas por m² – um verdadeiro “petit-cimento meia-boca”, brinca.
O segredo da técnica começa já na inspeção da qualidade da pedra, que deve ser bem cortada e com as dimensões de uma caixinha de fósforos. O tamanho menor deixa o mosaico mais bonito. A quantidade e o peso do que vai passar por cima da calçada conta também.
As calçadas de mosaico português ou petit-pavé, presentes em Portugal e vários outros países, são marca registrada do centro de Curitiba. Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo
As calçadas de mosaico português ou petit-pavé, presentes em Portugal e vários outros países, são marca registrada do centro de Curitiba. Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo
O preparo do terreno é igualmente importante: deve-se retirar uma camada de até oito centímetros de terra. Depois, medir o caimento do lugar, que deve ser proporcional à metragem. Antes de despejar a massa feita de areia e cimento, é preciso mexer, espalhar e nivelar. Aí entram as pedras. Para fazer os desenhos como os de pinhão e motivos indígenas, as pedras devem ser posicionadas sobre a base. “A colocação é sempre de fora da forma para dentro.”
Nessa etapa estão os outros truques de mestre de Valmir. Até o martelo é especial, levinho, com 700 gramas , feito sob encomenda. “É um petit-pavé sem brutalidade, com delicadeza”, diz. Com as ferramentas certas, é só fixar as pedras no chão, em cima da massa. Mas não se engane: as batidinhas em cada pedra também têm seus segredos. “No máximo três. E as pedras brancas requerem mais cuidado, porque são mais sensíveis, de calcário .”
O mestre-calceteiro Valmir “vê” com as mãos, sente as pedras para fazer poesia nas calçadas, como a da Rua XV, na foto ao lado. Foto: Fernando Zequinão/Gazeta do Povo
O mestre-calceteiro Valmir “vê” com as mãos, sente as pedras para fazer poesia nas calçadas, como a da Rua XV, na foto ao lado. Foto: Fernando Zequinão/Gazeta do Povo
Ainda tem o fato de a mão não poder parar. Isso mesmo. Entre fixar uma pedra e procurar pela próxima, o martelinho continua. Do contrário, o ritmo vai por água abaixo. O bom calceteiro, na opinião de Valmir, vê com as mãos. Só pelo tato ele sabe qual das seis faces da pedra encaixará melhor.
Depois de terminar o trecho, o acabamento se dá por duas ou três camadas de massa de areia e cimento para os rejuntes. Entre uma e outra, a área é molhada e tudo é emparelhado com o soquete de madeira. “Esse é o momento de consertar as costas”, brinca .
Foto: Daniel Castellano/Gazeta do Povo<br>
Foto: Daniel Castellano/Gazeta do Povo<br>
Tanta técnica rendeu reconhecimento, por aqui e lá fora. Um amigo da Itália – que ele conheceu por um grupo de uma rede social que reúne calceteiros pelo mundo – convidou Valmir para fazer uma calçada de petit-pavé em Bordeaux, na França. Convite que ele não pode aceitar, pelas dificuldades que envolvem cruzar o oceano em uma viagem internacional. “Mas ainda quero ir.”
Outro sonho é ensinar o ofício a outras pessoas. Para isso, ele precisa do diploma da Escola de Calceteiros da Câmara Municipal de Lisboa, cidade que é um dos berços da arte. O pedido para fazer o curso e obter o título foi aceito, mas ele teria que viajar de uma semana para a outra, o que não foi possível. “Mas não desisti. Ainda vou dar um jeito de deixar meu legado.”
*especial para a Gazeta do Povo

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