Receber as chaves do apartamento novo e quitá-lo junto à construtora nem sempre é sinônimo de realizar o sonho da casa própria. Para alguns proprietários de unidades de um empreendimento localizado na região central de Curitiba, ao contrário, isto acabou se transformando em dor de cabeça.
Cerca de um ano e meio após a conclusão da obra e a entrega dos apartamentos do edifício incorporado pela Rossi, boa parte dos compradores ainda não conseguiu transferir a escritura dos imóveis para seu nome, como conta João da Silva*, proprietário de um apartamento no empreendimento.
“Várias unidades estão alienadas como garantia à uma dívida que a Rossi tem com o [banco que financiou a obra]. Como a empresa não quita [o débito], o banco não libera as hipotecas e nós não conseguimos transferir as unidades”, detalha.
Além do impasse em relação à transferência e efetiva posse do bem, João* conta que a hipoteca dos apartamentos tem gerado outros problemas. No caso dele, o fato de não poder utilizar o FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) para amortizar o saldo do financiamento que contratou para quitar a compra junto à construtora no momento da entrega das chaves.
“Fiz um planejamento e, por conta disso, minha situação financeira se desorganizou completamente. Há casos ainda mais graves, como os de vizinhos que querem vender suas unidades e não podem por conta desse impasse”, acrescenta.
É o caso de Maria Oliveira*, por exemplo. Depois de adquirir uma unidade e quitá-la à vista junto à Rossi, ela conta que planejava vender o imóvel ou dá-lo como parte do pagamento na compra de um apartamento maior.
“Queria comprar mais uma unidade no mesmo prédio, pois gosto daqui. Mas, como a primeira deu dor de cabeça, não ousei comprar a segunda”, lamenta. Maria* ainda acrescenta que, no momento da assinatura do contrato de compra e venda, chegou a questionar o corretor sobre a hipoteca. Este, porém, segundo ela, limitou-se a dizer que o contrato seguia o modelo padrão, mas que ela não precisava se preocupar, pois, como estava pagando o apartamento à vista, e consequentemente não teria dívida, sua unidade não seria dada como garantia.
“Fui enganada. Eu acreditei no nome da Rossi, eles mentiram para mim com relação à redação [do contrato] e até hoje não tenho a escritura em meu nome”, lamenta Maria*.
Outro lado
Para tentar uma solução para o caso, os moradores contam que vêm procurando a construtora, mas que o retorno que recebem dela é insatisfatório. “Todos os canais de comunicação com a Rossi contam com resposta automática agradecendo o contato. Então, passam-se alguns dias e o retorno é uma mensagem de erro no envio. Neste momento, não sei nem quem é o credor, quem tem o direito sobre esta hipoteca”, conta Maria*. “A Rossi contratou uma assessoria para auxiliar os compradores em assuntos financeiros. A assessoria, entretanto, está perdida, sem saber o que fazer, solicitando apenas que registremos protocolos junto à Rossi com pedidos de esclarecimentos, que não surtem efeito algum, pois nem resposta nos é dada”, acrescenta João*.
Procurada pela reportagem, a assessoria se limitou a dizer que não tem autorização para repassar informações sobre o caso. A Rossi, por sua vez, encaminhou nota na qual confirma a hipoteca das unidades e se diz à disposição dos clientes para esclarecimentos. Confira o texto na íntegra:
“A Rossi esclarece que em função do financiamento para execução da obra, prática comum de mercado e comunicada pela companhia aos clientes no ato da compra, as unidades do empreendimento foram hipotecadas. Com a conclusão das obras e novas vendas, a companhia realiza a baixa da hipoteca das unidades.
Além disso, a Rossi esclarece que nas unidades do empreendimento que tiveram averbações decorrentes de processo judicial, a companhia ratifica que tem promovido as medidas judiciais cabíveis na busca do cancelamento dessa averbação e destaca que tal fato não impede a comercialização das unidades. Afirma que possui patrimônio suficiente para responder pelo assunto e se mantém à disposição de seus clientes para quaisquer esclarecimentos adicionais.”
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Solução
Além do contato com a empresa, João conta que alguns proprietários de unidades do empreendimento entraram com um processo na Promotoria de Justiça de Defesa do Consumidor, órgão do Ministério Público do Paraná (MPPR), visando a baixa da hipoteca e a transferência da escritura dos imóveis.
Procurado pela reportagem, o MPPR esclareceu, por meio de sua assessoria de imprensa, que a hipoteca dos apartamentos não é ilegal, e que a construtora pode hipotecar o empreendimento como garantia desde que isto esteja especificado no contrato de compra e venda dos imóveis.
A advogada Cristiane de Oliveira Azim Nogueira, que atua no escritório Maranhão de Loyola & Nogueira Advogados Associados e é membro da Comissão de Direito Imobiliário e da Construção da OAB-PR (Ordem dos Advogados do Brasil – Seção do Paraná), discorda e afirma que, apesar de ser considerada praxe de mercado, esta prática é tida como abusiva frente tanto ao Código de Defesa do Consumidor quanto a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ). “O que temos visto na praça é a situação inversa, pois boa parte das construtoras não trabalham mais desta forma. Vejo este como um caso isolado”, destaca.
Tanto a advogada quanto o MPPR afirmam, no entanto, que a hipoteca não impede que o proprietário possa transferir o bem para o seu nome. Mas alertam que, para isso, será necessário que ele acione a Justiça.
“A pessoa pode procurar o poder judiciário e pedir a antecipação de tutela, que é uma medida liminar solicitando a liberação da hipoteca, com base tanto no Código de Defesa do Consumidor, a partir do princípio da boa fé objetiva, como na Súmula 308, do STJ [Superior Tribunal de Justiça], que pacificou essa questão em favor do adquirente e diz expressamente que a hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, seja ela anterior ou posterior a celebração do contrato de promessa de compra e venda, não tem eficácia perante o comprador do imóvel. Em todas essas hipóteses há jurisprudência favorável aos adquirentes”, explica Cristiane.
Além da baixa na hipoteca, a advogada lembra que, no caso de outros transtornos decorrentes da alienação do bem, o comprador ainda pode pleitear indenização por danos morais para cobrir eventuais prejuízos financeiros e/ou pessoais.
Todo cuidado é pouco
Para evitar todo o desgaste que um processo judicial demanda e garantir uma compra segura, a orientação da advogada Cristiane e do Ministério Público do Paraná é a de que o proprietário dê atenção a todos os pontos do contrato, em especial aos que se referem à hipoteca.
Assim, se no contrato de compra e venda constar que a unidade está atrelada à uma hipoteca, o comprador pode solicitar que esta cláusula seja retirada antes de fechar o negócio e assinar o documento. “Mais do que isso, é preciso exigir que seja inserida no contrato uma cláusula que diga que aquela unidade não é objeto de hipoteca ou garantia perante qualquer instituição financeira. Isso demonstra boa fé por parte de quem está adquirindo o imóvel”, acrescenta a advogada.
Buscar informações a respeito da construtora e do bem que se pretende adquirir é outra importante etapa do processo. O comprador pode, por exemplo, ir até o cartório de Registro de Imóveis e retirar uma matrícula atualizada do empreendimento. Se o imóvel estiver alienado ou com qualquer outra pendência judicial, o documento trará tal informação.
“Vale a pena as pessoas pesquisarem e se assessorarem bem antes da compra. Nos Estados Unidos, por exemplo, ninguém adquire um imóvel sem ter uma assessoria jurídica. No Brasil há cada vez mais profissionais especializados nesta área e, às vezes, este será o único bem de valor que a pessoa irá adquirir na vida. Então, é importante ter cautela”, orienta Cristiane.
*A reportagem omitiu o nome das fontes para preservar suas identidades.