Entrevista
Expo Revestir
“Nosso objetivo é tornar cada projeto mais generoso para o público”, revela Charles Renfro
O arquiteto norte-americano é um dos sócios do escritório multidisciplinar Diller Scofidio + Renfro e falou com exclusividade para HAUS durante a Expo Revestir 2022. | Georgie Wood/Divulgação
Quando Charles Renfro era criança, ele já queria ser arquiteto. O encantamento com a área surgiu quando, ainda muito novo, ele testemunhou sua cidade natal, Houston, no Texas, crescer e se transformar. À medida que o tempo passou, Renfro entendeu que a transformação que a arquitetura pode promover não se restringia apenas à estética e, quando em 1997, ele foi trabalhar no estúdio Diller Scofidio - hoje Diller Scofidio + Renfro, pois ele também é sócio - passou a desenvolver projetos que promovessem alguma mudança.
Charles Renfro foi um dos destaques da programação da Expo Revestir 2022 e conversou com exclusividade com HAUS por email. Na entrevista, ele falou sobre a sua relação com a arquitetura, sobre o trabalho desenvolvido pelo Diller Scofidio + Renfro e sobre seu encantamento com o Rio de Janeiro, onde um projeto do estúdio - o Museu da Imagem e do Som, na praia de Copacabana - está em construção.
Gostaria de começar com uma pergunta que você deve estar cansado de responder, mas é inevitável: o que o levou à arquitetura?
Nasci no Texas em 1964 e cresci em Houston, que era uma cidade em expansão na época. Fui muito influenciado pela emoção de ver uma cidade ganhar vida do zero, com uma energia que nenhuma outra cidade tinha. Eu estava engajado com arquitetura por testemunhar essa criação em uma idade muito precoce, e decidi persegui-la como uma profissão naquele momento.
Aos 8 ou 9 anos, eu já desenhava e fazia modelos por conta própria. Mesmo no jardim de infância, eu fazia maquetes de cidades e ruas que eram da minha própria criação. Meus professores muitas vezes checavam com meus pais para ver se eles não estavam por trás dos modelos, porque eles não acreditavam que uma criança de cinco anos era capaz de fazer algo daquele tipo.
Na quarta série, sofri bullying na escola por um garoto chamado Raymond Mayfield - ele ameaçava me bater todos os dias depois da aula. Quando contei à minha mãe – eu era um verdadeiro filhinho da mamãe – ela disse: “Vamos tirar você da escola. O que você quer fazer em vez disso?” Naturalmente, eu disse a ela que queria ir ver prédios. Eu queria ver o Greenway Plaza, o prédio Pennzoil, a Galleria e o Museu de Belas Artes, porque era obra de Mies van der Rohe. Por duas semanas, ela me tirou da escola e nós passeamos em seu grande e velho Cadillac, vendo todos os prédios em Houston. Isso selou o acordo.
Como foi ser um cara gay crescendo no Texas? Em que medida moldou a sua percepção do espaço e a arquitetura que produz?
Eu sofri bullying durante toda a minha infância e foi muito horrível. A maneira que eu escapei dessa perseguição foi mergulhando em certas coisas. Uma delas era a arquitetura da cidade sendo construída ao meu redor. Eu me senti meio impotente na época, mas, em algum lugar lá no fundo, eu sabia que se eu pudesse me envolver com a criação de espaços, eu poderia encontrar meu próprio poder nisso. A arquitetura me ajudou a imaginar um futuro onde eu estivesse mais no controle e pudesse fazer coisas que me agradassem, um onde eu não seria uma vítima por causa de quem eu sou.
Eu também sou o produto do pós-guerra americano, quando as famílias estavam tendo oportunidades que não tinham antes. Pessoas de todo o mundo se mudaram para Houston para buscar novos empregos em empresas de energia. Meu pai era um deles, e minha mãe também se formou professora. Era um enorme caldeirão. Quando penso em minha carreira como arquiteto, realmente acho que fui produto desse caldo de novas oportunidades e otimismo. Mesmo que eu me sentisse perseguido como gay no Texas, havia muitos de nós lá. Curiosamente, desde que me mudei para Nova York, descobri que existem pelo menos cinco ou seis gays da minha cidade natal que estão em importantes posições de liderança cultural na cidade, fazendo um trabalho realmente incrível.
Você pode descrever seus primeiros dias na Diller + Scofidio?
Quando entrei para o estúdio em 1997, eles não tinham funcionários, mas tinham acabado de conseguir seu primeiro trabalho de arquitetura nos EUA - o restaurante Brasserie, no Seagram Building, em Nova York. Eles não tinham ninguém na equipe que pudesse fazer o projeto, e havia um boato circulando de que eu era muito bom como recém-formado em Columbia, e que já tinha alguma experiência. Eu vim para me juntar a eles e o que aconteceu em seguida foi o destino.
Eu podia fazer projetos do começo ao fim e fazer um conjunto de construção, e eles precisavam disso - mas o que eu fiz foi me estabelecer como um co-conspirador com Liz e Ric. Nós éramos mais parecidos do que diferentes, e nos sentíamos super confortáveis trabalhando uns com os outros, até o ponto em que Liz, Ric e eu estávamos completando as frases uns dos outros e desenhando nos desenhos uns dos outros. O encontro foi muito natural.
Uma das razões pelas quais me senti tão confortável naquele estúdio é que Liz e Ric eram estranhos, em todos os sentidos da palavra. Ric é um homem mestiço e afro-americano praticando arquitetura, o que era super raro. Liz é uma imigrante judia europeia, filha de sobreviventes do holocausto. Eu sou gay. Cada um de nós tinha demônios contra os quais estávamos lutando, e estávamos usando a arquitetura como nossa metodologia para tentar interrogar as estruturas da sociedade, cultura, espaço e política. Cada um de nós queria usar a arquitetura para empurrar o discurso - discurso público e experiência pública - para lugares levemente desconfortáveis, para lugares inesperados e para lugares que refletiam essencialmente algumas de nossas próprias experiências e interesses pessoais no mundo.
Seja por coincidência ou por design - sem trocadilhos - o estúdio começou a se transformar em uma prática muito mais orientada para a construção na mesma época em que cheguei. Primeiro com The Brasserie, seguido pelo Blur Building, e, em seguida, rolando em três projetos divisores de águas para o estúdio: o ICA, em Boston, o High Line e o Lincoln Center, ambos em Nova York. Entramos em uma relação de trabalho, que resultou no crescimento da prática no que é hoje: agora somos quatro sócios - Liz, Ric, eu e Benjamin Gilmartin - com uma equipe de mais de 100 arquitetos, designers, artistas e pesquisadores.
Qual é a filosofia no cerne do trabalho da DS+R?
Nosso trabalho aborda a mudança do papel das instituições e o futuro das cidades - democratizar o espaço é um dos cartões de visita de nossa prática. Nosso objetivo é tornar cada projeto mais generoso e mais engajado com o público mais amplo do que o cliente jamais imaginou que poderia ser. Do High Line ao Parque Zaryadye em Moscou, nosso trabalho é definido pelo espaço livre e acessível. Cada um oferece uma nova generosidade para uma experiência compartilhada. Os bilhetes não são necessários. A informalidade é incentivada no lugar de experiências predeterminadas. O acesso é concedido a todos, independentemente de raça ou classe ou gênero ou sexualidade ou nível de educação ou nacionalidade.
Um projeto que espero que revolucione radicalmente esse princípio é o Museu da Imagem e do Som, cuja construção foi retomada no Rio de Janeiro. Mesmo sem ingresso, os visitantes podem acessar o prédio diretamente do icônico calçadão de Burle Marx, subir a escada externa do prédio, observar as galerias e aproveitar a cobertura pública. Este será o primeiro ponto de vista elevado da praia que não exige que você possua uma residência particular ou seja hóspede de um hotel chique à beira-mar. Museus normalmente não são considerados lugares de democracia, mas lugares para a elite. Queríamos inverter esse roteiro, fazendo com que o projeto do Rio fosse uma extensão da Praia de Copacabana, um dos espaços mais democráticos da cidade.
Ouvi dizer que você é um grande fã do Rio de Janeiro. Por quê?
Cidades como organismos são as coisas mais excitantes para mim, mais do que arquitetura. Nesse sentido, de todas as cidades que já estive, o Rio de Janeiro é incomparável. Acredito que seja uma peça de arquitetura primorosa, com natureza e paisagem e pessoas e sensualidade e sol. A praia de Copacabana é provavelmente a praia urbana mais forte e icônica do mundo. A beleza e a democracia disso é que ela reúne todo mundo: velhos, jovens, gays, heterossexuais, gordos, magros, homens, mulheres, pessoas trans. Todo mundo vai à praia. Todos eles se respeitam uns aos outros. Isso não é assim no resto da cidade, que luta contra a desigualdade. Mas a praia é incrível. Com o Museu da Imagem e do Som queríamos trazer essa democracia para o nosso prédio. A fachada funciona de forma semelhante ao ICA para capturar o Rio, para trazer os pontos turísticos da cidade para o acervo do museu.
Você é responsável por muitos projetos do portfólio acadêmico do estúdio. Por quê?
Existem forças gravitacionais que influenciam os projetos que cada parceiro toma sob suas asas, e meu foco se direcionou para o nosso trabalho acadêmico. Esse certamente não é o único trabalho que faço, mas é uma grande parte dos projetos que lidero no estúdio agora. Todos os nossos edifícios educacionais funcionam como ferramentas ativas na instrumentalização da pedagogia. Por exemplo, para o edifício McMurtry, na Universidade de Stanford, recebemos um programa que, por definição, era dividido entre história da arte e arte de estúdio, com ambos os lados do programa se recusando a ceder às exigências espaciais e arquitetônicas do outro. Colocamos essas duas vertentes da disciplina uma contra a outra, fazendo uma construção que trata do discurso entre a produção artística e o estudo da arte. Os dois lados se provocam, cada um de um lado de um pátio. A Biblioteca de Arte e Arquitetura, uma caixa de vidro flutuante transparente, está literalmente e metaforicamente posicionada entre as duas vertentes. O edifício ilustra o distanciamento dos dois lados do programa, mas também os provoca a se envolverem criativamente.
Na Columbia Business School, um dos principais princípios que levaram à organização dos prédios é a integração de populações tipicamente segregadas, como alunos e professores e funcionários administrativos. Essas populações geralmente estão concentradas em blocos de espaço. Decidimos que eles deveriam ser embaralhados juntos. Normalmente, as salas de aula e os espaços dos alunos ficam na parte inferior do prédio, com os escritórios do corpo docente e administrativo empilhados no topo, longe dos alunos, com as melhores vistas. Isso reforça o pensamento de cima para baixo. Ao embaralhar as populações e juntá-las através de uma rede de escadas e espaços sociais adjacentes, todos têm o mesmo acesso às vistas, ao térreo e uns aos outros.
Você é o co-presidente da BOFFO, uma organização sem fins lucrativos que apresenta arte e design inovadores e experimentais. O que é inovação em design para você e quais são os projetos mais recentes da BOFFO?
BOFFO é uma residência artística em Pines, que fica em Fire Island. Pines é um exclusivo território gay, predominantemente branco, em uma bela ilha-barreira no extremo sul de Long Island. Embora seus moradores tenham sido historicamente líderes nas áreas artísticas em Nova York e no exterior, a diversidade não tem sido um de seus cartões de visita. A BOFFO mudou isso. Trouxe dezenas de artistas BIPOC (acrônimo que significa Black, Indigenous, People of Color, ou seja, pretos, indígenas e pessoas de cor, em tradução livre), queer e trans para a ilha como membros integrantes da comunidade, cujo trabalho durante a residência se concentra na singularidade de Fire Island. Para a BOFFO, o trabalho experimental é um trabalho que desafia e ajuda a derrubar questões sistêmicas de elitismo e racismo que infectam até nossas comunidades mais progressistas.