Entrevista
Expo Revestir 2023
“Precisamos reconhecer o que as mulheres trazem à mesa todos os dias para a arquitetura”, diz Martha Thorne
Martha esteve no Brasil para o Fórum Internacional da Expo Revestir 2023. | Divulgação
De que forma a arquitetura, o design e o urbanismo podem contribuir para criar ambientes de qualidade, com foco em sustentabilidade e resiliência? Essa é uma das questões que movem os estudos desenvolvidos por Martha Thorne, professora da IE School of Architecture & Design, conselheira sênior da Fundação Henrik Frode Obel, que concede o Prêmio Obel, e ex-diretora executiva do Prêmio Pritzker.
Em entrevista a HAUS, concedida enquanto esteve no Brasil para o Fórum Internacional da Expo Revestir 2023, Martha falou sobre a relação entre boa arquitetura, sustentabilidade e resiliência e também sobre como podemos ampliar o espaço e o reconhecimento dado às mulheres na arquitetura e em áreas correlatas.
Martha, você pode começar nos contando onde você está vivendo e trabalhando?
Bem, como muitas pessoas – e especialmente as mulheres -, sou “multitarefas” e, felizmente, “multividas”. Então, minha casa é a Espanha, tenho um apartamento em Madri e, recentemente, aluguei outro em Barcelona. São as duas maiores cidades espanholas, muito diferentes entre si em alguns aspectos, mas muito parecidas em outros (como serem abertas e evoluídas). São lugares onde tenho bons amigos.
Em termos de carreira, minha base é Madri, onde sou professora da IE School of Architecture and Design. Tive a sorte de ser reitora por sete anos e decidi que queria dedicar mais tempo aos alunos e à pesquisa em nosso Center for Sustainable Cities [Centro para Cidades Sustentáveis]. Então, fiz essa transição e agora meu foco é o ensino e a pesquisa sobre diferentes aspectos da cidade, usando-a como laboratório para criar novos conhecimentos.
Meu segundo turno é como conselheira sênior da Henrik Frode Obel Foundation e do Prêmio Obel, que é atribuído a um projeto de arquitetura – um edifício, um conceito etc – que causa impacto no mundo. Para mim, ele reflete o futuro dos prêmios.
Podemos olhar para belos edifícios como um posicionamento ou um objeto, mas acho que o papel do nosso ambiente construído agora é encorajar as pessoas a pensar sobre o futuro de uma forma mais holística, mudar comportamentos e entender que vamos sobreviver e prosperar se criarmos ambientes construídos que também sobreviverão e prosperarão.
Você foi diretora do Prêmio Pritzker por 15 anos. Na sua opinião, em que sentido a arquitetura evoluiu nesse período?
Acho que podemos olhar para a arquitetura pelas lentes da evolução do Prêmio Pritzker, porque, afinal, todos os prêmios existem dentro de um contexto e o Pritzker, mesmo tentando liderar e se posicionar sobre a promessa do futuro, conta com jurados cujas decisões fazem parte do momento em que elas foram tomadas.
Se voltarmos aos primeiros anos, antes mesmo de eu ser diretora-executiva… O prêmio foi fundado em 1979, então nos anos 1980 até no início dos anos 1990, o foco estava em certos conceitos de criatividade, inovação, talvez, edifícios atemporais bem construídos, olhando para o edifício como uma entidade completa.
Hoje, quando olhamos para o Prêmio Pritzker, ele fala mais sobre mensagens e conceitos. Não é a expressão formal de um edifício, mas o que está por trás dele. E acho que vemos muito mais palavras e expressões como sustentabilidade, resposta a desastres naturais e causados pelo homem, inclusão, educação e, claro, emergência climática.
Se olharmos para os vencedores, alguns, claro, estão no final de suas carreiras e estamos reconhecendo o que eles fizeram por meio de sua arquitetura para criar belos ambientes, mas também para criar cidades que promovam a comunicação ou a educação. Mas muitos dos novos vencedores também expressam a promessa do futuro.
Então, a melhor arquitetura, os melhores profissionais e os exemplos também são muito mais holísticos, muito mais complexos nos objetivos e metas. Eles tentam mostrar, eu acho, como a arquitetura é praticada. Não é apenas o autor criativo de um edifício, é - como o Pritzker - muito mais amplo.
No mês de março [quando Martha esteve no Brasil] comemora-se o Dia Internacional da Mulher. Você já comentou em uma entrevista alguns anos atrás que as mulheres merecem mais reconhecimento no campo da arquitetura do que já receberam. O Pritzker 2023, por exemplo, foi mais uma vez concedido a um homem. Vemos avanços na representação feminina no campo da arquitetura. Você pode nos dar alguns exemplos?
Sim, acho que quando falo sobre mulheres na arquitetura, uma parte muito pequena disso diz respeito às mulheres ganhando prêmios. A estrutura das premiações não é, de certa forma, o melhor exemplo do impacto das mulheres e acho que precisamos reconhecê-las não apenas em prêmios, mas no que elas trazem para a mesa todos os dias, em todos os campos da arquitetura.
A maneira de fazermos isso é questionando: por que não há mais mulheres liderando escritórios de arquitetura? Por que elas não trabalham no governo? Por que o salário das mulheres é menor que o dos homens? Também acho que precisamos olhar para o que a profissão representa. Se for uma definição muito restrita ela não ajudará mulheres ou homens. Se pudermos abraçar a ideia de que agora, em nossas escolas, 60% são mulheres e que elas têm muito a contribuir, vamos abrir a profissão para que possam fazê-lo e, quem sabe, conciliar vida pessoal e familiar e serem colaboradoras plenas e talentosas na área da arquitetura.
Também acho que precisamos olhar para a construção civil, os imóveis, os bancos, as seguradoras e outros tipos de organizações. Quando pensamos em quem constrói nossas cidades, quem constrói nosso ambiente físico, existem muitas indústrias próximas à arquitetura que, como a arquitetura, não abriram a porta de novos talentos para as mulheres. São áreas que têm um modelo antigo de fazer negócios. E isso tem que mudar. Para mim, reconhecer as mulheres é abrir as profissões e fazer as coisas de uma maneira nova para que haja mais espaço para elas. E mais espaço até para homens que não querem praticar a profissão de modo tradicional.
Recentemente, uma casa construída na periferia de Belo Horizonte recebeu o prêmio de melhor casa do ArchDaily Building of the Year 2023. Infelizmente, o projeto é uma exceção quando se pensa em moradias populares e comunidades em áreas periféricas não só no Brasil, mas no mundo. Por que ainda é tão difícil fazer com que as soluções e os benefícios de um projeto arquitetônico bem executado, mesmo que com materiais menos nobres, cheguem à maioria da população?
Prêmios de arquitetura existem por vários motivos, dependendo da organização, empresa ou criador da premiação. Da mesma forma, o propósito e os critérios para julgar os trabalhos inscritos variam muito. Tradicionalmente, os prêmios de arquitetura procuravam identificar talento, criatividade e uma definição mais restrita da boa arquitetura, centrada no designer. O reconhecimento ia frequentemente para edifícios que seriam admirados por outros arquitetos.
Hoje percebemos que a arquitetura e todas as intervenções em nosso ambiente construído devem lidar com desafios muito complexos e ir além da ideia do edifício como objeto. Apesar disso, prêmios geralmente não evoluem tão rapidamente quanto desejaríamos. E o júri que seleciona os premiados tende a recompensar projetos e conceitos próximos dos seus próprios trabalhos ou interesses. Mesmo que um prêmio pudesse favorecer segmentos maiores ou menos favorecidos da sociedade, poderia ser mais difícil de entender ou não refletir critérios há muito estabelecidos e, portanto, seria passível de debate.
Estendendo essa discussão às cidades: quais são as barreiras que ainda restam para que elas sejam habitáveis, responsivas e promovam a qualidade de vida dos seus cidadãos?
Na minha opinião pessoal, atualmente há muitos interesses conflitantes nas cidades e, deste modo, elas se tornam mais um campo de batalha do que um projeto construído com base em consenso e visão. Os governos municipais não podem construir ou transformar as cidades sozinhos. Eles precisam que o setor privado contribua, mas o poder público pode articular valores, metas e caminhos a seguir. Haverá várias estratégias, incluindo leis, incentivos, políticas, papéis para grupos comunitários etc, mas devemos saber para onde estamos indo e por quê. Só assim poderemos seguir todos na mesma direção.
Ter "uma visão comum para o futuro de uma cidade", como você mencionou em outra ocasião, contribuiria para isso. Do que depende essa visão compartilhada?
Precisamos acreditar que cada morador da cidade tem o direito de se desenvolver em um ambiente seguro, saudável, igualitário e responsável. Deve-se partir da ideia de que uma cidade é para todos os seus moradores (não alguns) e que somente com um projeto comum, trabalhando juntos, sobreviveremos. O setor público precisa liderar a discussão e a sociedade civil deve fazer parte do diálogo, mas também deve haver um papel para o setor privado, instituições acadêmicas, ONGs. Claro, não há garantia de harmonia total, mas a cidade do futuro deve ser vista como um projeto comum, onde todos os setores da sociedade são necessários e podem contribuir.
Muito se fala em sustentabilidade, e ela vai além das questões ambientais. Quais desafios ainda precisam ser superados para que a arquitetura possa contribuir para a construção de espaços, cidades e comunidades mais sustentáveis socialmente, economicamente etc.?
Todos concordamos que queremos sustentabilidade, a ONU definiu 17 objetivos de desenvolvimento sustentável. No entanto, realmente não temos uma boa compreensão do que a sustentabilidade implica. Sabemos que o ambiente construído consome muito em recursos e energia, baseado muitas vezes em uma cultura do “usar e jogar fora”, sem padrões ou boas práticas construtivas. Para que a arquitetura contribua de modo efetivo para a sustentabilidade, precisamos realizar pesquisas e educar estudantes e a sociedade como um todo sobre os impactos na saúde e no bem-estar das pessoas e do planeta. Toda intervenção ou projeto deveria ser avaliado de modo a considerar todos os seus potenciais impactos antes da construção (mais do que apenas lucro ou emissões de CO2). Isso significa que os arquitetos devem aprender com profissionais de outros campos do conhecimento e inclui-los em suas equipes para contribuir com ambientes mais responsivos e responsáveis.
Você pode comentar sobre suas impressões da arquitetura produzida na América Latina e no Brasil? Em que termos ela se aproxima e difere daquela produzida no hemisfério norte?
Não sou especialista em arquitetura brasileira ou latino-americana. A região é tão vasta que tenho certeza de que existe uma grande diversidade de abordagens, filosofias, resultados etc. Uma coisa que percebo é o frescor na abordagem dos arquitetos mais jovens. Eles parecem prontos para assumir riscos e fazer uma trajetória para projetos mais significativos e responsáveis. Vejo respeito pelos arquitetos e seus processos criativos. Isso me dá esperança de que, se eles estiverem prontos para responder ao mundo de hoje (com todas as suas pressões de desigualdade, aquecimento global, migração, avanços tecnológicos, além de pensar integralmente o ciclo de vida dos edifícios), esta região será líder no caminho a seguir. O antigo modelo do profissional independente ou do arquiteto “estrela” se foi. Os países mais jovens têm capacidade para criar uma maneira nova e mais responsável de fazer as coisas.