Estilo & Cultura
Histórias da Biblioteca Pública que os livros não contam
Características mais racionalistas marcam o prédio da biblioteca, com exceção do pé direito aumentado, uma intervenção do governo da época para garantir monumentalidade. Fotos: Letícia Akemi /Gazeta do Povo
Quem vê Isamara Bernardi pelos corredores da Biblioteca Pública do Paraná em busca de algum livro que ainda não tenha passado por suas mãos – tarefa sempre difícil para a professora aposentada de 57 anos que lê em média dez livros por mês – não imagina que tal liberdade de circulação nem sempre foi item de série das bibliotecas brasileiras. O historiador Marcelo Sutil explica: antes da década de 1950, elas eram fechadas. “O acervo ficava isolado dos leitores pelo balcão. Somente os funcionários tinham acesso e buscavam exatamente a obra solicitada pelos visitantes”, conta Sutil. Mas esse raciocínio foi quebrado.
O autor da genialidade foi o arquiteto curitibano Romeu Paulo da Costa, falecido em maio do ano passado em decorrência de uma parada cardíaca. Aos 22 anos, saiu vencedor de um concurso da prefeitura de Curitiba para construir a biblioteca municipal. Por razões desconhecidas, a obra ficou engavetada durante alguns anos. A notícia chegou aos ouvidos do então governador Bento Munhoz da Rocha, que já estava anunciando obras para o festejo do centenário de emancipação do Paraná. O jovem engenheiro-arquiteto aceitou sem medo o convite do governo do estado para levantar a biblioteca central.
Quando “ninguém entendia nada de biblioteca”, como o próprio Romeu brinca em entrevista concedida a Sutil em 2004, ele decidiu colocar a mão no vespeiro. Foi ao Rio de Janeiro consultar a bibliotecária Lydia Queiroz Sambaquy, uma autoridade nacional da área, e não teve dúvidas de que ousaria com esse novo formato. “Você entra e vai lá na prateleira, como numa livraria”, sentencia Romeu na mesma entrevista.
Modernidades
Em oito meses o prédio ficou pronto. Foi a única obra – entre Teatro Guaíra, Praça Dezenove de Dezembro, Centro Cívico e Colégio Tiradentes – a ser inaugurada a tempo das comemorações, em 1953. No projeto, Romeu, que foi um dos expoentes do modernismo no Paraná, optou por linhas mais racionalistas, livres dos excessos de decorativismo, tão comum na arquitetura da época.
Em oito meses o prédio ficou pronto. Foi a única obra – entre Teatro Guaíra, Praça Dezenove de Dezembro, Centro Cívico e Colégio Tiradentes – a ser inaugurada a tempo das comemorações, em 1953. No projeto, Romeu, que foi um dos expoentes do modernismo no Paraná, optou por linhas mais racionalistas, livres dos excessos de decorativismo, tão comum na arquitetura da época.
A estrutura do edifício de 8 mil metros quadrados é extremamente funcional, com simetria interna, janelões que aproveitam a luz natural, rampas de acesso no exterior e chão com desenhos geométricos. O pé direito foi aumentado a pedido do governo, para garantir a monumentalidade do prédio, que, desde então, marcou a paisagem do centro da cidade.
Mas, devido ao prazo de entrega da obra, nem tudo saiu como planejado. As paredes laterais ficaram sem painéis artísticos, o mármore branco que seria o revestimento externo foi substituído por pastilhas e massa, e os brises horizontais (quebra-sol nas janelas ou laterais do edifício para reduzir a luminosidade excessiva) foram descartados.
Mesmo com as limitações, não deu outra: em 1961 a Comissão Estadual de Bibliotecas do Estado da Guanabara concedeu à Biblioteca Pública do Paraná o Prêmio Paula Brito como biblioteca modelo e instituição padrão de desenvolvimento e difusão cultural do Brasil.
No poleiro
“A biblioteca sempre precisa de um carinho”, brinca a arquiteta Lauri da Costa, filha de Romeu. Seguindo o próprio conselho, em 1993 a instituição passou por uma reforma que ela mesma conduziu ao lado do pai. O pulo do gato foi a instalação dos mezaninos metálicos, que aproveitam o pé direito alto e ampliam a área de acervo. “Foi uma boa solução. São estruturas leves e móveis, que podem ser removidas a qualquer momento”, avalia Lauri. “Sem falar que a população aprovou. Hoje as pessoas adoram subir lá e ficar empoleiradas como passarinhos.”
“A biblioteca sempre precisa de um carinho”, brinca a arquiteta Lauri da Costa, filha de Romeu. Seguindo o próprio conselho, em 1993 a instituição passou por uma reforma que ela mesma conduziu ao lado do pai. O pulo do gato foi a instalação dos mezaninos metálicos, que aproveitam o pé direito alto e ampliam a área de acervo. “Foi uma boa solução. São estruturas leves e móveis, que podem ser removidas a qualquer momento”, avalia Lauri. “Sem falar que a população aprovou. Hoje as pessoas adoram subir lá e ficar empoleiradas como passarinhos.”
Desde 2012 existe um novo projeto de readequação arquitetônica da biblioteca, de autoria do escritório de Manoel Coelho. “Eu morei no centro por muitos anos. E não tinha um só dia em que eu não passasse na biblioteca”, confidencia Coelho, que nutre uma paixão latina pelo prédio. “Nosso objetivo é devolver a dignidade que a biblioteca perdeu devido ao relaxamento das administrações públicas, e torná-la novamente um ponto de encontro cultural.” O novo projeto, ainda sem data de conclusão por falta de orçamento, prevê um café, novas disposições das salas e do hall de entrada, e mobiliário contemporâneo.
Entra reforma, sai reforma, Joaquim Vicente Theodoro Neto, 66 anos , continua lá. Há 30 anos segue firme e sorridente, consertando as capas dos livros. Reclama que as pessoas não cuidam bem das obras e que a maioria volta para o restauro a cada dois anos. Mas, no fundo, agradece pelo “favor”. É a oportunidade que ele tem de dar uma relida rápida e matar as saudades de alguns exemplares. Enquanto espera a cola de alguns volumes secar, sempre pega outro para “dar uma olhada”. Seus preferidos são os livros de História. Sim, aquelas verdadeiras bíblias que explicam quem foram os fenícios, como se deu o processo de povoamento nas Américas e por quê Hitler não conquistou a Rússia. Como se vê, a liberdade entre livros é para todos.