Estilo & Cultura
A arte, a ironia e a religiosidade de Felipe Scandelari
"Eu sempre busquei fazer um trabalho de arte que fosse um louvor a Deus". Foto: Letícia Akemi/Gazeta do Povo
Era setembro de 2017, e Felipe Scandelari estava em casa quando começou a receber incessantemente notícias de ataques à exposição em que estava uma de suas obras. Seu quadro Last Resort constava na mostra “Queermuseu — Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”. Encerrada naquele mês pelo local em que estava em cartaz, o Santander Cultural, a exposição foi alvo de uma onda de críticas nas redes sociais.
Para Scandelari, os primeiros dias foram difíceis, de choque. Os ataques feitos à mostra respingaram em sua obra. “Eu queria ficar pintando e ficava recebendo vídeos, ligações”, conta. No entanto, ao perceber que a repercussão do assunto tinha tomado imensas proporções no país, ele passou a ver a situação com um viés mais otimista. “A arte estava sendo discutida pelo país inteiro. Lá no interior da Paraíba tinha um cara falando de arte. Tinha muita gente contra [a exposição], mas também muita gente querendo entender e ver se era realmente isso que estavam falando ou não”.
Com 36 anos, luterano e nascido em Curitiba, para Scandelari sempre esteve claro que a arte faria parte da composição do seu futuro. Virou pintor ainda criança. E o que o mantém com a profissão até hoje é buscar fazer arte de forma que ela tenha algum significado.
O início
Guache e tinta acrílica fizeram parte da infância de Scandelari. Desde antes dos 10 anos ele já frequentava aulas de pintura e desenho. No início da adolescência pausou sua produção. Foi aos 15 anos que retomou a arte e nunca mais parou. Quando chegou aos vestibulares, Scandelari, que já vendia seus trabalhos, percebeu que já tinha profissão. “Às vezes eu matava aula pra ir em estúdio, e foi mais isso que me fez ser artista — não a faculdade, mas a atitude de correr atrás e querer pintar”. E, por mais que admire todas as formas de arte, o foco de Scandelari sempre ficou no pincel.
Foi assim que ele seguiu para a graduação em pintura pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná, na qual se formou em 2007. Ele estima já ter pintado mais de mil quadros. “A maioria é ruim, porque é de quando eu era estudante. Eu pintava quase um quadro por dia, como um aprendizado”, brinca.
Na sequência, Scandelari seguiu de vento em popa na criação. Logo após a faculdade, ganhou da Fundação Cultural de Curitiba (FCC) a Bolsa Produção para Artes Visuais, que bancou sua produção por um ano com direito a uma exposição individual final. Em seguida, garantiu um espaço no projeto Rumos Itaú Cultural, e assim continuou.
A arte e a religião
Um intervalo de cerca de cinco anos com poucas exposições marcou uma fase reflexiva de Scandelari, em que ele passou a encarar a arte com mais responsabilidade. Se antes ele gostava de pintar coisas “que não eram nada” — uma parede, uma torneira, um copo de vidro vazio —, aos poucos ele passou a buscar questões mais profundas.
Foi como uma forma de dar este significado à sua obra que Scandelari passou a trabalhar com a religião. Mas, muito mais do que ter este assunto como protagonista de seus quadros, ele vê a religiosidade perpassando seu trabalho durante todo o processo criativo.
“Eu acredito que Deus existe, começa por aí. A pintura é pra mim um dom que Deus me deu — e quando eu falo fica tão brega que eu fico um pouco triste. Meu objetivo é usar um dom que vem de Deus para fazer arte para dedicar a Deus”, explica. “Eu sempre busquei um trabalho que fosse esse louvor e me coloco como uma ferramenta se ele quiser me usar”. Em seu ateliê, Felipe mantém uma Bíblia junto das tintas e pincéis.
Esse momento de reflexão teve início com a morte de seu pai, há quase dez anos. Foi quando passou a se questionar sobre a própria vida. “O que eu vou ter feito e do que vai ter valido minha vida se eu continuar vivendo só por coisas que são momentâneas?”. Por mais que não tenha uma resposta concreta para a dúvida, ele mudou a maneira como encarava seu próprio modo de vida.
E assim, conta, passou a acreditar no amor e a construir uma família. Atualmente, ele é casado há sete anos, tem uma filha com quatro e sua esposa está grávida. Todos moram na casa de um andar onde também está instalado o ateliê de Felipe, construído nos fundos quando trocaram o antigo sobrado com sua mãe. Quadros do pintor ilustram todas as paredes.
A partir disso, sua veia autoral ficou mais clara, e Scandelari voltou à ativa. A ironia e a ambiguidade, que sempre foram elementos fundamentais em seus quadros, ganharam novos ares. Como forma de buscar arte com significado, mas ao mesmo fugindo de se levar muito a sério e deixar seus quadros “sem graça e um pouco brega”, ele acaba indo para a sátira. E isso aparece no seu trabalho sob diversas formas. “Eu gosto de pegar uma área da pintura e pintar bonito, com detalhes. Aí em outro ponto faço uma área meio nojenta, deixo inacabado. Procuro contrastar a beleza com a feiura, a tosquice”.
Toda ironia tem seu objetivo. Scandelari não quer entregar o significado de um quadro na primeira impressão. Ele quer aproveitar o tempo que alguém dedica a olhar sua pintura ao procurar uma interpretação. “Quando você faz um trabalho muito óbvio você trata o público como se fosse burro. Você não dá nada pra acrescentar, pensar, refletir. Quando você faz uma imagem polêmica, chama a atenção de todo mundo”.
De Caravaggio à Galinha Pintadinha
Scandelari confere grande parte de suas influências ao surrealismo e ao renascimento, com pintores como Caravaggio e Da Vinci. Elementos da cultura pop também estão frequentemente presentes nas telas. Esse flerte de inspirações é notável nos seus trabalhos, e Last Resort — o quadro que gerou polêmica no Queermuseu — é um destes exemplos. Nele, se vê a figura de uma mulher segurando um macaco. À imagem foram atribuídas diversas interpretações, como a de que era Maria segurando um macaco no lugar de Jesus, ou ainda uma crítica à teoria criacionista.
O artista explica que não há uma resposta certa às interpretações possíveis a partir de seus quadros, mas que estas respostas diretas são simplistas. “Eu não faria esse trabalho se fosse pra ser isso”, relata. “Eu acredito que Maria não era loira de olho azul em Israel há dois mil anos atrás, por exemplo”. Para ele, a mulher pintada não é Maria, é uma referência à história da arte; é a ideia de como os pintores representavam Maria. “Além disso, o próprio cristianismo reprova a criação de símbolos para serem adorados”.
Queermuseu
O quadro Last Resort foi alvo de comentários durante a CPI dos Maus Tratos em Crianças e Adolescentes, que investigou as acusações de pedofilia, zoofilia e desrespeito às crenças religiosas em exposições que geraram polêmica, como o Queermuseu. Segundo Scandelari, para o presidente da CPI, senador Magno Malta (PR-ES), o quadro chama Jesus de macaco e critica o cristianismo.
“Isso é uma das coisas que me deixou muito triste com a história do Queermuseu, porque não foi pra isso que eu fiz o trabalho. Não vejo nada de mal em gerar polêmica, mas também não foi pra agradar e fazer um trabalho pra ser aceito”, explica.
Quando Scandelari recebeu o convite do curador Gaudêncio Fidélis para fazer parte da exposição, não imaginou que ela fosse causar problemas. No entanto, para ele, o fato de os artistas fazerem trabalhos com essas temáticas já são, por si só, uma atitude política.
Para o pintor, além de reacender o debate da arte pelo Brasil todo, a polêmica que envolveu o tema lembrou que o papel da arte também é tirar as pessoas da sua zona de conforto. “A gente tem muito o que lutar. A arte tem muito o que incomodar. E isso tudo foi bom porque a arte fica no museu, ninguém vai lá. E ainda assim ela tem esse poder de trazer questões”.