Design

Designers nordestinos transformam ícones do sertão em móveis premiados

Sharon Abdalla
Sharon Abdalla
16/12/2017 17:00
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Um cacto. Uma bola de basquete. Dunas e falésias nordestinas. Desconexos à primeira vista, estes elementos ilustram a base do trabalho assinado pelo designer André Gurgel e o arquiteto Felipe Bezerra. Há cinco anos à frente do estúdio de design Mula Preta, um dos mais irreverentes e criativos do cenário nacional contemporâneo, a dupla une o lúdico e o sofisticado em peças que exalam a brasilidade, em especial a nordestinidade. O resultado são móveis e objetos com ar despretensioso, como a poltrona Basquete, uma das primeiras a sair do papel. “Existe conceito e funcionalidade [em nossas peças], e quando esta ligação é bem feita as pessoas se identificam”, afirmam os profissionais, que colecionam premiações nos mais importantes eventos de design internacionais, como a A’Design Awards Milan. Confira a entrevista exclusiva que eles concederam à HAUS

Como nasceu a parceria de vocês?

Felipe: Nos conhecemos há cinco anos, quando a empresa de arquitetura e incorporação da minha família, e na qual chefio a equipe de projetos, passou a contratar a empresa do André para fazer maquetes em 3D. Houve uma empatia grande de ambas as partes e identificamos um interesse mútuo em design. [Neste período] o André foi premiado com um trabalho autoral, em Milão. Quando ele voltou da premiação, convidei-o para começarmos um novo projeto. A partir daí, sentamos para desenhar a estratégia de como iríamos erguer uma empresa de design fora do eixo consumidor e produtor, no Sul, uma vez que estávamos em Natal [RN], uma região que não é industrial e que estava à margem deste processo.

E por quê o nome Mula Preta?

André: Quando iniciamos a parceria pensamos em vários nomes, [muitos deles] americanizados. Então o Felipe disse: “a gente é daqui [do Nordeste] e, por mais que estejamos fora do eixo produtor, nossa raiz é essa”. Temos uma sintonia em termos de irreverência e acabou que ele sugeriu: “Por quê não Mula Preta?”. Inicialmente levei um susto, mas este é um nome que marca, que contrasta o sofisticado e o irreverente das peças.
O nome também é inspirado na música [“Moda da Mula Preta”] que Luiz Gonzaga gravou. Optamos então por ele, que marca a nossa nordestinidade, é um nome que quando se escuta não se esquece e que traz o espírito do nosso trabalho. Demonstra a irreverência, a ironia, a brincadeira com as peças e seus nomes. Quando sentamos para desenhar o logo, por sua vez, pensamos na mulinha que se dobra, que é um brinquedo tradicional no Nordeste.

De que forma a brasilidade se manifesta no trabalho de vocês? Ela está mais restrita à cultura nordestina?

Temos peças inspiradas em pranchas de surf, em um pouco da nordestinidade e na nossa vida, no que fizemos lá atrás. O banco Kichute, por exemplo, remete ao [famoso] tênis dos anos 1970 que imitava uma chuteira de futebol, com o qual as crianças iam à escola.

Como é o processo para o desenvolvimento de uma peça?

Felipe: Trabalhamos em escritórios diferentes. O André continua com o estúdio de computação gráfica [VirtuaCG] e eu com o escritório de arquitetura [Felipe Bezerra Arquitetos] e nós nos encontramos uma vez por semana. As peças nascem de um de nós e o outro agrega muito ou, pelo menos, alguma coisa. Um cria a cadeira e, o outro, a versão dela para balanço. Nas reuniões semanais a gente senta para bater papo, rabiscar, e quando vemos temos a peça Cacto, por exemplo. E assim vamos, sem muita rigidez e com uma harmonia grande de aceitar [o que está bom] e jogar fora o que está ruim.

A irreverência é uma marca constante nas peças assinadas pelo Mula Preta. Isso é planejado ou é uma consequência do estilo de vida de vocês?

É um pouco da personalidade, deste nosso jeito brincalhão de ser e do que está na nossa memória. Cacto, Kichute, Basquete e tantas outras peças são fruto de tudo isso e também de coisas da natureza, como a mesa Vitória Régia. Isso faz parte do nosso jeito de ser, não é forçado nem planejado. Se vemos uma nuvem no céu, ela pode virar uma mesa. Quando se fala em design, a primeira imagem que vem à mente costuma ser a de peças com um ar sofisticado.

Como é possível convencer o público a ter mais personalidade em casa a partir de um design que remete a um estilo de vida mais leve, em contra posição à decoração de showroom que costuma nortear os projetos?

Esse é o nosso grande desafio. Sabemos que isto faz com que tenhamos que ralar mais, porque para colocar uma mesa de pingue-pongue na sala a pessoa tem que gostar de design, além de ter espaço para ela. Temos consciência de que estamos quebrando paradigmas, que as pessoas estão começando a encarar nossas peças como de decoração. Existe conceito e funcionalidade, e quando essa ligação é bem feita, harmônica, as pessoas entendem essa ideia e se identificam com ela.

O design brasileiro conquistou seu espaço no mercado internacional nos últimos anos. Na opinião de vocês, o que contribuiu para o reconhecimento do trabalho feito aqui?

Nos últimos anos, o Brasil deixou de ser um país marginal e se tornou um país da moda. A Copa do Mundo e as Olimpíadas fizeram com que o mundo passasse a nos observar e, no meio disso, surgiram expoentes como Jader Almeida e Zanini de Zanine, pessoas competentes que conseguiram se sobressair e emplacar projetos em grandes indústrias, vendendo na Itália, em Paris e Londres. Internamente, as indústrias perceberam que o mercado não compra mais commodities. Todos os fabricantes querem formar um time de meia dúzia de designers para agregar valor aos seus produtos. A valorização do design é clara, a indústria já está vendo isso, e ela precisa ser ampliada para além do móvel.

Qual é a dica que vocês deixam para quem está começando? Seria trabalhar em um escritório de design ou desenvolver uma linguagem própria?

Trabalhar em escritório é fundamental. Nós somos meio autodidatas em design, mas pensamos que trabalhar em escritório é importante para se conhecer a rotina. O caminho que trilhamos qualquer um pode trilhar. Se o design faz parte da pessoa como sentimento, persistência é fundamental. São poucas as fábricas que tem abertura. Então, há de se procurar um caminho, ver o que as pessoas já fizeram e fazer algo que chame a atenção, pois é muito difícil conseguir se destacar com uma banquetinha.