Arte em cerâmica
Design
Artista garimpa rede social para criar repositório da azulejaria brasileira

Parte do feed do perfil @azulejariabrasileria, organizado por Alexandre Mancini | Reprodução/Instagram
A presença da azulejaria é marca indelével na arte e no design brasileiros, mas parece ainda um tanto incompreendida, pouco valorizada ou registrada. Literalmente colados à arquitetura, os azulejos nem sempre são vistos como algo "solto", a ser observado por si. Esta é a percepção do prolífico artista e azulejista mineiro Alexandre Mancini, que dedica o ofício e boa parte da vida à arte tupiniquim expressa sobre placas de cerâmica.
Natural da capital de Minas Gerais, Mancini atribui o nascimento de seu interesse por uma azulejaria genuinamente nacional não ao acaso, mas a "um processo de descoberta, de um interesse quase intuitivo". "Belo Horizonte é de 1897, quando foi fundada o país já era República. Então, o patrimônio maior que a gente tem aqui na cidade é um patrimônio moderno, da arquitetura moderna. Para mim, azulejo é brasileiro porque foi esse que eu vi", resume ele ao rememorar o que conheceu entre infância e juventude: Athos Bulcão, Mário Silésio, Portinari; nada semelhante à azulejaria portuguesa, bastante comum em regiões de colonização mais antiga, como o Nordeste brasileiro.
Tampouco foi por acaso que o azulejista escolheu o Instagram como ferramenta para um projeto de valorização do formato. Há cerca de três meses Alexandre toca o perfil Azulejaria Brasileira, organizado por ele a partir da colaboração com seguidores e outros apaixonados pelos murais instalados país afora.
A ideia, contou a HAUS, surgiu daquela percepção citada inicialmente, que vem fermentando há longos anos. Foi no início dos anos 2000 que ele enveredou pela azulejaria, deixando para trás uma rotina insossa na pequena empresa de decoração de porcelanas para hotelaria e restaurantes que tinha à época. "Tentei criar alguma outra coisa que fosse mais criativa, que desse uma resposta mais pessoal, pudesse expressar melhor. E foi aí que comecei a estudar azulejaria, até para situar o meu trabalho dentro disso. Em primeiro lugar teve uma coisa bastante pessoal: eu precisava explicar para mim mesmo o que eu fazia, o que eu pretendia. E conhecer a azulejaria brasileira foi um encontro de vocação", completa.
Nesta jornada, Mancini encontrou poucos estudos dedicados inteiramente à azulejaria que se fez (e se faz) no Brasil. "No meu trabalho de pesquisa, sempre achei muito mais informação através dos artigos ou livros de arquitetura do que diretamente sobre azulejaria", revela. Como, então, fazer um inventário de obras espalhadas de Norte a Sul, Leste a Oeste? Onde ele já existe, ainda que de modo desorganizado e não intencional.

"Como é difícil encontrar material sobre o tema, principalmente catalogar essas imagens, encontrar registro das obras produzidas no Brasil em todas as épocas, eu decidi criar esse perfil no Instagram. Por um motivo bastante simples: é mais fácil localizar as obras – seja por artistas ou por cidades – no próprio Instagram. A ferramenta que é essa rede dá a possibilidade de encontrar e rastrear essas obras". Uma boa busca por hashtags pode levar a novas descobertas que começaram a ser colecionadas e integradas ao perfil a partir de repostagens.
"Primeiro são feitas republicações dos originais. Eu sempre tento manter inclusive o texto que primeiramente a pessoa colocou, porque de alguma forma eu estou me valendo dessa informação passada. A minha função é organizar todas essas imagens, mas nem sempre as informações são corretas ou totalmente dirigidas à azulejaria. É aí que tento buscar ao menos o nome do autor, a cidade onde está, tudo através de pesquisa".
O perfil já nasceu aberto à colaboração, que chega dia a dia e das mais diversas regiões. Alexandre recebe fotos de seguidores e recebe registros de amigos e da família como lembrança de viagens de férias.
Com algumas centenas de obras já "catalogadas", Mancini avalia que o perfil tem um potencial ímpar. "Nunca vi uma compilação tão grande de azulejarias do Brasil. Desde já ele carrega um tipo de conteúdo que é quase inédito neste sentido: de compilar e reunir. E acho que só o Instagram poderia permitir esta compilação. Se eu quisesse seguir este projeto em qualquer outro meio, qualquer outra rede, seria muito improvável que eu encontrasse grande parte dessas obras".
Uma azulejaria legitimamente brasileira
Com o crescimento do perfil, que hoje acumula pouco mais de 5 mil seguidores, o azulejista comemora o que percebe ser um aumento do apreço e interesse dos jovens pela produção nacional. "A maior parcela dos seguidores do perfil está entre seus 20 e 30 anos. Estão muito interessadas e acho que incentivadas também a pensar ou talvez trabalhar nisso", pondera.
De modo geral, Mancini suspeita que a condição de estar atrelada à arquitetura talvez tenha tirado um pouco da percepção da azulejaria como uma matéria específica. "Quando a gente fala dos painéis do Portinari está falando quase que obrigatoriamente das obras do Niemeyer, do Lúcio Costa", exemplifica. Há também alguma confusão: afinal, azulejo?
"Eu acho que quando a pessoa vê o painel do Portinari, do Athos Bulcão, do Burle Marx, pode despertar um interesse sobre aquela manifestação artística. Talvez ela comece a aprender a olhar o azulejo como expressão de arte. O problema também é que o azulejo é muito usado dentro de áreas internas, cozinha, banheiro e isso pode trazer alguma confusão – o que é arte, o que é design, o que é revestimento? Enfim, cada obra de um grande artista é um convite a se observar melhor a azulejaria como um suporte", acredita.

É a partir de nomes como o de Bulcão, que é praticamente sinônimo de Brasília ao lado do traço de Niemeyer, que Alexandre Mancini reforça outra razão para falar em uma azulejaria verde-e-amarela. "Na história do Brasil, poucos artistas trabalharam somente com os azulejos. A grande maioria eram artistas de ateliê, de cavalete, pintores, que se atreviam a fazer os azulejos – ou principalmente se valiam dos ateliês e oficinas para a execução desses azulejos".
Em comparação com expressões mais carregadas de tradição (como na criação portuguesa e árabe), o organizador percebe no fazer local menos formalidade e mais liberdade, inclusive na busca por um gestual mais rápido, a partir da utilização do azulejo já esmaltado (em contraponto ao uso do biscoito - a cerâmica crua - no velho mundo): "bem típico do Brasil, pegar algo, uma referência, e fazer da sua forma. Tem uma herança portuguesa, evidente, mas fizemos o nosso jeito e o nosso jeito é múltiplo", arremata.
É um fazer que marca passado e presente, com manifestações que seguem despontando e que avançam para além da azulejaria per se. "Chama atenção na produção nova o uso da azulejaria não literalmente (para a produção de azulejos), mas a produção como referência para obras de arte contemporânea. Aqui dá para citar a Adriana Varejão. Tem um monte de gente nova usando essa abordagem criativa dos azulejos não literalmente, mas como uma referência pictórica", frisa.