Um jardinzinho mofino

Key Imaguire Junior
23/07/2016 00:00
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O personagem machadiano, esperando pela deixa para participar do romance, entretém-se observando, pela janela, “um jardinzinho mofino”.
Tão mofino que nosso maior escritor, em alguns casos tão preciso, não o descreve: ficamos sem saber no que se desencantava do tal jardim, mas não é difícil imaginar. São comuns, nas casas, projetos nos quais se praticam recortes para facilitar iluminação e aeração. Na maioria das vezes, em espaços não sociais. O lugar, com poucos metros quadrados, não recebe suficientes cuidados – e torna-se “mofino”.
Terminada a construção, o espaço teve certamente removida a caliça e os entulhos, foi aplainado e ajardinado. Mas nos tempos seguintes foi abandonado a si próprio, de onde vem sua “mofineza”.
Volta e meia vejo algum por aí, em casas ou em cantos de praças. Melancólicos, mas não desagradáveis. A natureza não desiste: as plantas têm umas poucas folhas, mas sempre surgem novas, e até uma ou outra flor dá um colorido alegre, diante do imenso muro manchado pela umidade. A grama rala deixa descobertos pedaços de chão de terra, onde vão surgir algumas ervas não convidadas. Passarinhos vêm ciscar e dão som e vida ao pedaço.
Acontece também em cantos de praças, às vezes nos chamados “jardinetes”: se não estiverem submersos em lixo, terão esse aspecto de “terra de ninguém”, de abandono, mas também de sossego, de estar à margem da lida predatória do ser humano.
O “jardinzinho mofino” pode ser uma alegria para os olhos: uma resistência da simplicidade e da espontaneidade entre as vaidades e arrogâncias dos nossos tempos. Um convite à reflexão, mas não induzida e produzida segundo conceitos filosóficos e religiosos. Como, de resto, os jardins japoneses, milimetricamente pensados e elaborados.
Como tudo o que é simples e bom, a atitude moderna tem sido suprimir esses espaços, retirá-los à vida impermeabilizando, esterilizando, revestindo tudo com lajotas. O pretexto é a facilidade de manutenção, mas o efeito é suprimir reflexão em favor do celular, do Facebook, dos joguinhos.
“Jardinzinho mofino”, mesmo na tristeza e melancolia do abandono, a natureza dá suas pinceladas de vida: folhas secas de um bonito amarelo espalhadas pelo chão; se há uma calçadinha de pedras, nos interstícios nasce uma floresta de micro-árvores (os musgos) ; se há um muro de tijolos, desce a cascata verde de uma samambaia.
* Key Imaguire Junior é curitibano assumido, arquiteto, mestre e doutor em História. Foi professor de Arquitetura Brasileira do CAU/UFPR durante 35 anos; quadrinhólogo. key.imaguire.junior@gmail.com
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