Qual o som da sua cidade? Pare um minuto para escutá-la
O amanhecer de São Paulo tem um tipo de zumbido que ao amanhecer é mais forte. Foto: Bigstock
Reconhecemos uma pessoa por sua voz — um timbre, uma entonação, uma pronúncia, um sotaque. E assim também, uma cidade, e mais facilmente nos limiares: cada uma amanhece e anoitece com uma sonoplastia própria.
Um dos momentos mais marcantes na Istambul, de Orhan Pamuk, acontece quando ele acorda de madrugada, com a sensação de que “alguma coisa não está certa”. Olha pela janela, da qual avista o Bósforo, e vê a massa escura, com luzes apagadas, imensa, de um navio russo que trafega do Mar Negro ao Mediterrâneo — e certamente, ninguém deveria saber que ele estava ali. O que com certeza o acordara, tocando um alarma no subconsciente vivido inteiramente na cidade, era o silêncio, a ausência das pequenas embarcações que normalmente trafegam pelo estreito.
Como regra, só nos damos conta do som particular de uma cidade ao amanhecer em outra: São Paulo tem um tipo de zumbido que não é interrompido pela noite, mas ao amanhecer é mais forte. Cidades litorâneas têm aquele “tup-tup-tup” dos pequenos barcos de pesca indo para o alto mar. Salvador, se a gente vai à janela a qualquer hora da noite, escuta sempre uma batucada em algum lugar. Em Veneza, a Sereníssima, só se escutam as rodinhas das malas e dos carrinhos tipo supermercado. Em São Luis, Maranhão, as palmeiras aplaudem o vento…
Há quem tenha feroz birra com isso, mas não me incomodam apitos de trem, passagem de aviões, latidos de cães: sons que nos fazem acordar sabendo que o mundo ainda não acabou. São sons que fazem a voz da cidade os mugidos, cantos de galos, grilos e sapos, um privilégio quase exclusivo da vida rural. O tanger dos sinos, o “apito da fábrica de tecidos que vem ferir os meus ouvidos” são passado sem volta.
Tenho o privilégio de morar em um bairro que, embora ainda resista à sanha das imobiliárias, acordo com sabiás, bentevis e joãos-de-barro começando sua lida diária. Concorrentes, os ônibus começando a circular, maquitas em alguma obra próxima e caminhões-caçamba sacudindo as placas tectônicas do planeta.
Tenho o privilégio de morar em um bairro que, embora ainda resista à sanha das imobiliárias, acordo com sabiás, bentevis e joãos-de-barro começando sua lida diária. Concorrentes, os ônibus começando a circular, maquitas em alguma obra próxima e caminhões-caçamba sacudindo as placas tectônicas do planeta.
Os silêncios da noite e da madrugada recebem o um pouco cordial empurrão de “chega prá lá” do amanhecer — já o anoitecer parece mais tranquilo e civilizado. Não sei por onde anda a pessoa que, ao encerrar seu expediente de trabalho, chegava à janela do prédio, bem central, para ensaiar trombone. Que grande exemplo, se bastante gente se dispusesse a ensaiar um instrumento, na janela, ao entardecer! Não seríamos tão agredidos, é claro, pelos roncos de escapamentos, buzinas e trombadas…
Há quem abra os olhos e saia pulando da cama. E há quem, como Proust, precise de oitenta páginas para acordar. A cidade investe algumas horas muito ruidosas e tumultuadas até chegar a sua sonoridade média, na qual viverá mais um dia. E que é a sua voz…
Há quem abra os olhos e saia pulando da cama. E há quem, como Proust, precise de oitenta páginas para acordar. A cidade investe algumas horas muito ruidosas e tumultuadas até chegar a sua sonoridade média, na qual viverá mais um dia. E que é a sua voz…