Opinião: como o capitalismo tornou as cidades impessoais e matou as culturas regionais
A cidade é um formigueiro que apaga as individualidades e abriga o anonimato. Foto: Key Imaguire Jr.
Estranhas sensações urbanas
Orhan Pamuk: “Numa cidade, você pode estar sozinho numa multidão, e o que faz uma cidade ser uma cidade é permitir que você esconda essa sensação estranha em meio ao formigueiro humano”. Acredito que, pelas obras do autor, Istambul seja atualmente uma das cidades do planeta mais bem biografadas.
Os romances de Pamuk, alentados volumes com várias centenas de páginas, se lêem como um gibi, tal a arte de sua narrativa. Neles não é perceptível a antiga Constantinopla – mas, na história, é marcante o suficiente para que sua tomada pelos turcos, no século 15, seja o limite “oficial” do fim da Idade Média.
Essa cidade — a de Constantino — não comparece nos romances de Pamuk. A cidade por ele vivida e (auto)biografada é a dos invasores otomanos, vindos dos confins da Ásia, uma das tantas ordas que estabeleceu sem volta. Em grande parte, a dialética dessa cidade cortada pelos Bósforo – outro personagem muito presente – passagem para o Mar Negro, com um pé na Europa e outro na Ásia são as “sensações urbanas” magistralmente retratadas em seus livros. A obsessão europeizante da sociedade está em constante luta com as profundas raízes antigas: provavelmente, a região mais complicada do planeta, sempre fervendo.
Os personagens de Pamuk são construídos de modo a dar conta dessas particularidades da cidade. Eles estão submersos e se afogam na vida cultural, econômica, política, social e todas as mais da cidade. Transitam da favela, através dos pequenos prédios que se transformam em cortiços e vão até os produtos da verticalização capitalista, as grandes torres com dezenas de pavimentos. Dos quais se avistam todas essas etapas, como paisagem narradora… e percorrem, evidente, todas as mutações e formulações de sua sociedade. Cada personagem do autor tem seu percurso urbano, suas ocupações e preocupações: a soma, é a vida da cidade. O autor acrescenta, tipo bônus, umas poucas fotos, mapas, árvores genealógicas, relação de personagens que ajudam o leitor a se situar no labirinto de sua narrativa.
Mais recentemente, eles se sentem cada vez mais alheios: a impessoalidade capitalista, a da globalização, vai apagando o que é específico, a cultura regional. Cada vez é mais semelhante ao que podemos identificar em nossas cidades americanas e tropicais, como vida e comportamento. “Nos últimos tempos, porém, ele se sentia cada vez mais alheio. Seria por conta da incontida maré humana que só crescia, os milhões de novas pessoas que acorriam a Istambul, as novas casas, arranha-céus e centros comerciais que vinham de par com elas?”
Os livros de Orhan Pamuk lhe valeram um Prêmio Nobel, como para quem “canta o mundo, cantando sua aldeia”. Eles nos causam uma estranha sensação: lá como cá, o capitalismo leva as cidades por caminhos muito parecidos. O que não é reconfortante.