Voltaremos a ser nômades?
Qualquer leitor de gibi cita, com orgulho, que a NASA copia Flash Gordon. Qualquer cinéfilo mostra, sem orgulho algum, o tanto que nossas cidades estão próximas do “2020”. Mas pouca gente leu “Les mange-bitume” (“Os comedores de asfalto”) , inédito em português, publicado pela Dargaud em 1974.
A extraordinária ficção começa nos anos setenta – quando congestionamentos, reais, tornam o trânsito parisiense inviável. No começo, procura-se ocupações para passar o tempo produtivamente: alguns lêem – como o bibliófilo José Mindlin, que gostava de congestionamentos, e tinha sempre uma pilha de livros ao lado. Senhoras tricotam ou fazem as unhas; homens fazem a barba com aparelhos a pilha. Quando o álbum foi publicado, ainda não havia tecnologia digital – mas datilógrafas tinham suas Olivetti, para adiantar o trabalho, no porta-luvas. Com os notebooks, é mais do que o óbvio – para não mencionar gente que já tem, se não os escritórios, pelo menos uma extensão dele no banco de trás do carro. Vendedores de comida – que já são numerosos, em qualquer parada de sinal ou congestionamento de estrada surgem do nada para defender seus trocados.
Então, o presidente da França – o álbum é francês – em acordo com a Comunidade Européia, que ainda engatinhava nessa época – decide: “- Rodar é o progresso!” As cidades são demolidas e uma gigantesca rede de auto-estradas é lançada através do continente – estão lá as Rodovias do Euro, para quem quiser ver. Todos passam a viver em motor-homes, 24 horas por dia. Todo o comércio se torna drive-in, o que, sabemos, já está iniciado; os food-trucks acompanham o deslocamento sem pausa. Estamos chegando lá, certo? O ser humano volta a ser nômade, o homo sapiens é substituído pelo homo mobilis.
Mas, revestido dessa tecnologia, o ser humano continua o mesmo, e assim os problemas urbanos transcendem a existência das próprias cidades – e a civilização rodante adquire os vícios herdados da fixa. Surge contestação dos não-adaptados, a revolta contra o mecanicismo exagerado que não resolve – nem poderia – problemas individuais ou grupais. Bandos se afastam das rodovias e recomeçam a civilização da capo – a partir da barbárie, com tacape, arco e flecha, cabanas precárias, o retorno à coleta e caça.
Evidente que é uma obra de ficção – mas genial, na medida em que mostra não necessariamente onde vamos chegar, mas onde podemos chegar.
E como toda ficção futurista — poderíamos chamar de História Prospectiva? — é uma projeção pessimista, na qual há certamente imprecisões e erros – mas um acerto em alta porcentagem já é perceptível.
Pensemos apenas: se todos os seres humanos estiverem rodando em estradas – que são propriedade estatal – quem será o proprietário das terras, urbanas ou não? O assustador, na projeção de Lob e Bielsa (que não dirige…) é o tanto que, apenas abrindo os olhos, a vemos chegando, num horizonte muito próximo.