Como os gatos podem nos ajudar a entender as cidades
Os gatos compartilham as cidades desde os primórdios da civilização e são cidadãos livres e bem adaptados. Foto: Pixabay
É certo que nós humanos, fazemos cidades à nossa imagem e semelhança: com erros e acertos, belezas e feiuras, delícias e horrores.
Para tanto, não há como não cometer a apropriação de um território, seguindo critérios mais ou menos aleatórios em alguns casos, mais pensados em outros: a fundação de uma cidade vai da condita urbe de Rômulo e Remo – isto é, fundada e não surgida – até o genial “X” traçado por Lucio Costa no Planalto Central Brasileiro. Há cidades que convivem com seu território e há as que o agridem com ferocidade – e por isso, pagam alto preço.
Em qualquer caso, a Natureza não desiste de sua propriedade – uma fresta na calçada e surge um capinzinho verde; um terreno abandonado por alguns anos e crescem árvores de espécies nativas.
Entre os reapropriadores, há também outros seres vivos – afeiçoados e adaptados para sobreviver à hostilidade humana urbana. As aves, com sua mobilidade, são talvez as mais bem adaptadas. Mas desde ratos – dizem que uma cidade tem mais desses habitantes no subsolo que nas construções à superfície – até nossos cordiais amigos cães e gatos, são uma presença diferenciada da humana em qualquer lugar.
A presença felina é sempre charmosa, alegre, bonita e – infelizmente – cada vez mais rara. Estará aí uma das razões para o perigoso aumento da população dos ratos – lembrem-se das pestes negras, sempre no aguardo de um vacilo humano para atacar de novo.
Os gatos compartilham as cidades desde os primórdios da civilização – chegaram a ser sagrados no Egito faraônico, lembram? Mas onde os vi como cidadãos livres e bem adaptados foi em Siracusa, na Itália.
Frequentam a orla pedregosa da Ortígia, onde o mar está sempre para peixe, em pequenos grupos ou individualmente. Meditam, como apreciadores do Patrimônio Cultural da Humanidade nas ruínas de templos gregos com dois milênios e meio de existência: os homens os construíram e destruíram, eles apenas assistiram à nossa insensata troca de crenças.
Dá vontade de dirigir aos gatos nossas crônicas, como o jesuíta Antonio Vieira: cansado dos ouvidos de mercador que lhe faziam os humanos, dirigiu um de seus sermões de 1654 aos peixes: “Mudou o púlpito, mas não mudou a doutrina. Deixa as praças, vai às praias; deixa a terra e vai ao mar…: já que não me querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes.”
Que me ouçam os gatos de Siracusa, e já me darei por satisfeito: nos fins de tarde, nas praias, nas esplanadas, nas praças, marinas e ruelas que harmonizam sua bela cidade com o Mediterrâneo, são vistos filosofando tranquilamente – de costas para a cidade, apreciando o por-do-sol no mar.