Demolições são a selvageria das cidades e a queda da história dos bairros
O abandono de construções denota mais do que podemos imaginar, por trás desse fato, há muitas coordenadas urbanas, comerciais e... humanas. Foto: Divulgação
Ascensão e queda dos bairros
Observar e entender a arte e a arquitetura é um exercício civilizacional. Cada obra é um documento que traça o percurso do ser humano em seu melhor. Ou não: segundo Walter Benjamin, “todo documento de civilização é um documento de barbárie”. Mas arte e arquitetura revelam a inteligência, a sensibilidade e a habilidade humanas, em sínteses de lugar e tempo, das quais se pode dizer que foi o que valeu a pena na história.
Para isso, viajamos: queremos entender a nós mesmos e à nossa espécie. Mas não são necessários longos percursos em torturantes bancos de avião: um passeio a pé pelas nossas cidades é muito revelador. Vemos desde construções novas – nos últimos modelitos da moda imobiliária, cheirando a tinta – até ruínas.
Mas mesmo que as novas edificações ainda não tenham muito para dizer, comparadas às antigas, é preciso pensar em sua presença e conotações urbanísticas. Já as ruínas são mais ricas, falam por si, de sua vida vivida: envelheceram, e como tudo no planeta, podem ser lidas, entendidas e interpretadas. Quanto às demolições, na maior parte dos casos, são apenas selvageria: assistir uma construção sendo demolida é penalizante, arrasador: faz pensar nos esforço de concepção, no trabalho suado, nos materiais empregados, no engenho e arte que estão sendo zerados, enviados para os aterros.
Nas ruínas, o nascimento, o crescimento e a desfuncionalização que leva ao abandono podem ser vistos – na demolição, desaparece no ar como tudo o que é sólido, ou assim parecia.
Não só as construções em si – casas, igrejas, barracões – passam por essas fases, mas áreas inteiras das cidades, bairros, regiões, setores. Às vezes, têm a boa fortuna de ver seu interesse cultural reconhecido e não são abandonadas, mudam de função e continuam seu percurso com outras características. Isso, se não estiverem detonadas pelos processos de gentrificação pelos quais passaram.
Os habitantes da cidade fizeram suas casas, agrupando-se segundo seus critérios sociais, culturais e econômicos. Estabeleceram relações de vizinhança e redes de relações complexas e organicamente funcionais. Mas a cidade que envolve o bairro cresceu, funções mudaram ou afundaram em novas formulações da economia. Surgem vias de tráfego intenso, aluguel para fins comerciais e instituições incompatíveis com as moradias.
A proximidade do centro fica mais evidenciada e desperta a cobiça dos investidores: sempre num mesmo pacote, adensamento e verticalização. As relações de vizinhança se dissolvem ou são rompidas pela violência e criminalidade funcionais. Grandes árvores, cada uma um pequeno ambiente em si mesma, viram lenha; desaparecem os poucos animais sobreviventes; terrenos antes permeáveis viram habitações para carros, que são os estacionamentos.
O processo de decadência insidiosamente se revela na ausência de manutenção e, a seguir, no abandono total ou parcial. A região está em queda livre. É a lógica dos sistema, dizem. Será? Há também quem ache que é o progresso. Para quem? Mas temos todos a tendência a achar que é um processo inevitável. Talvez.