Artigo: Afinal, como explicar o prazer de voar
Um perfil dos “monstros que nos levam pelos ares, junto com milhares de toneladas.” Foto: Key Imaguire Jr.
Deveríamos restringir ao máximo o uso de combustíveis poluentes ao nível do chão – para quando os usarmos no ar, causar um mínimo de dano ambiental. Não discordo de quem diz – por medo ou outra razão qualquer – que “voar é para os pássaros”. Mas que é bom, cáspite, como é! Foi para essa sensação que Santos Dumont inventou o avião – logo desvirtuado, para desgosto dele e de toda a humanidade, em propósitos bélicos. Mas não é a única criação do gênio humano que resvala nos propósitos e é usada para infernizar.
Nossa tecnologia escassamente nos aproximou dos pássaros, salvo em alguns momentos. Não valem aqui os equipamentos esportivos, tipo asa-delta, ultraleves e similares – que são esportes mesmo e não meios de locomoção. Falo dos monstros que nos levam pelos ares, junto com milhares de toneladas de seu peso próprio, bagagens e centenas de pessoas – voando a dez mil metros de altura e a quase mil quilômetros por hora. Muita gente deixaria de voar se pensasse nesses números e no que eles significam.
Mas mesmo assim, sobram-nos – no desconforto daqueles assentos projetados por designers sádicos – alguns bons momentos, num voo. O melhor, não tenho dúvidas, é a decolagem. É quando a sensação de voar é mais real e perceptível por todos os sentidos. O ponto de observação vai subindo e o plano da cidade descendo, mostrando uma nova perspectiva de nosso habitat.
Os traçados urbanos, viários e rodoviários, tornam-se mais compreensíveis em seu conjunto, antes de desaparecerem numa indefinição sem graça. Era consolador que as áreas de proteção de rios e riachos, associadas ao relevo, mostrassem configurações do planeta quase incompreensíveis por outros meios. Mas isso, as recentes modificações nas leis florestais estão nos tirando também.
Depois, é a vez do “oceano de nuvens” – conheci quem escalasse altas montanhas para ver esse espetáculo. E é realmente um dos bons visuais a partir da janela de um avião. Ou, dependendo do bom humor do artista que os cria, são infinitos os espetáculos possíveis: maravilhosos, surreais, fascinantes.
Na altitude de cruzeiro, raramente se vê alguma coisa no solo, salvo massas amorfas, indefinidas e, na maior parte do tempo, indecifráveis. Uma má colocação – sem janela, a colocação é sempre ruim – praticamente zera a fruição do voo.
Sou do tempo em que o “prazer de voar” era mais que um slogan, existia realmente e era levado a sério. Pena que a metempsicose – e outros consolos para nossa condição de míseros terráqueos – não seja mais falada. Faz falta um Kafka sem complexo de culpa que nos ajude a sonhar que somos um Ícaro que deu certo…