As pátinas urbanas
Registros da cidade viva: desgastes, mofo, ferrugem mudam a cara das ruas com o passar do tempo. Fotos: Key Imaguire Jr./Divulgaçã
“Para criar, basta que trabalhem poucos dias, mas, para conservar, é necessário que assistam e continuem e trabalhem, não só muitos dias e muitos anos, mas sempre.” Esse jesuíta danado, o Padre Vieira (1608-1697) escrevia uns sermões que até hoje, quase quatro séculos depois, assombram pela lucidez e inteligência da argumentação.
Ele nos confirma que, com uso contínuo e conservação adequada, o tempo e o vento formam pátinas na cidade. Não confundi-las com desgaste e descuido – pelo contrário, e, num certo sentido, demonstram conivência harmoniosa dos humanos com a Natureza – envelhecimento digno, pode-se entender assim.
Troncos de velhas árvores, rugosos e musguentos, com suas raízes buscando desafogo sob o calçamento (é só tomar cuidado para não cair!); pedras gastas, alisadas por milhares de solas e de saltos de sapatos; peças metálicas que venceram a oxidação; arbustos que, apesar do descaso das gentes, insistem em viver fazendo algumas folhas e uma flor em cada primavera; aquelas escadas de igreja de interior, côncavas no meio do degrau. Tudo isso é muito bonito, reconfortante e nos ajuda a entender a vida e a nos sentirmos menos efêmeros ou descartáveis.
Há “coisas”, no entanto, que exatamente por se terem desfuncionalizado, têm uma permanência poética. São o rescaldo do cálculo custo/benefício que os gerou. Aqueles limpa-pés junto à porta, do tempo em que a ruas eram de barro, argolas de amarrar cavalos e bebedouros para animais, tampas de inspeção de sabe-se lá que instalações e que dão para mistérios subterrâneos indecifráveis.
Quem não sorri melancolicamente ao encontrar, em bares e botecos, aquelas propagandas antigas, de marcas que foram absorvidas por outras, com ortografias de d’antes, que nos remetem a tempos que, se não foram melhores, pelo menos eram mais risonhos?
Nossa memória enquanto humanóides urbanos se apóia em edificações, calçamentos, paisagens, que têm um poder de evocação mais forte, mais legível, por nos envolverem, por abrigarem atividades que nos interessam e enriquecem – motivo pelo qual, quantos mais pudermos manter em nosso convívio, melhor. Uma boa cidade vive bem consigo mesma, antes de mais nada. E, para nós vivermos bem numa cidade, não podemos prescindir das percepções de tempo, de História, de histórias – e das pequenas pátinas urbanas.