Ancestralidade

Arquitetura

Nos saberes construtivos indígenas há soluções para edificações contemporâneas

Monique Portela, especial para HAUS
22/07/2020 19:31
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Construção dentro do Ekôa Park, em Morretes, no Paraná. A obra do Sem Muros Arquitetura Integrada se baseia nos conhecimentos tradicionais e na permacultura. Foto: Tomaz Lotufo

O estigma de arquitetura rudimentar somado aos ideais de tecnologia enquanto high tech relegam os saberes construtivos indígenas a um imaginário pré-histórico. Esse padrão, o qual aponta para uma direção inequívoca do progresso, revela a chamada colonialidade do saber, conceito do sociólogo peruano Aníbal Quijano que escancara o lado oculto da modernidade: produzir hierarquias entre povos, o que mantém a América Latina, em especial seus povos originários, como subalterna. Em outras palavras, tendemos a pensar que o conhecimento que representa o futuro é produzido em outras terras, localizadas no Norte Global.
Hoje, a arquitetura indígena ainda está à margem das discussões e não costuma aparecer como solução atual, mesmo que a sustentabilidade seja o principal pilar do futuro das habitações. O ideário das construções sustentáveis muitas vezes se baseia no consumo de novas tecnologias que chegam ao Brasil com altos custos – enquanto os saberes construtivos indígenas oferecem opções democráticas que vão ao encontro das necessidades contemporâneas e locais.
Um exemplo é o Tekôa, espaço dentro do Ekôa Park, em Morretes, no Paraná. Desenvolvido pelo escritório colaborativo Sem Muros, a construção tem como base processos cooperativos e conhecimentos tradicionais somados a materiais disponíveis no território – no caso, bambu. “Temos na arquitetura indígena um elemento de pesquisa que nos inspira, tanto nas tecnologias quanto na maneira de compreender o espaço construído e a estrutura social. Tem muita coisa que vai além da forma, da matéria, mas que pega aspectos organizacionais, estruturam a sociedade e a maneira de pensar”, explica o arquiteto, permacultor e professor Tomaz Lotufo, do Sem Muros. A influência dos pensamentos indígena, quilombola e ribeirinho permeia seu trabalho por estar de acordo com aquilo que acredita como sustentável: uma arquitetura de impacto positivo, cujo projeto é apropriado pelo contexto, envolvendo toda a comunidade na construção de edificações e saberes.
Outro exemplo é a icônica edificação do Sebrae de Cuiabá, no Mato Grosso, projetada por José Afonso Botura Portocarrero com base nas casas indígenas do povo Yawalapit. Na cobertura, duas cascas de concreto espaçadas por 30 centímetros permitem que se crie um colchão de ar, simulando o que acontece com a palha nas ocas Yawalapit. Considerada exemplar em termos de arquitetura bioclimática, a casa respira. Assim, mantém-se uma temperatura amena, sem a necessidade de ar-condicionado. As paredes em vidro permitem luminosidade abundante e natural, mas, graças ao recuo com beirais, o conforto térmico é mantido. A construção também envolveu a mão de obra de mulheres indígenas, o uso de materiais locais e a preservação da vegetação nativa. Em 2018, a construção ganhou o prêmio de edificação em uso mais sustentável da América Latina.

Resgate de saberes

Os conhecimentos construtivos dos Yawalapit mantêm-se preservados, mas graças à política massiva e histórica de apagamento da cultura indígena, nem todos os povos estão na mesma situação. É o que aponta Luciano Mandú, integrante do grupo EtniCidades, Grupo de Estudos Étnicos e Raciais em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia. Indígena tupinambá, hoje desenvolve uma pesquisa que cartografa a memória indígena dentro da cidade de Salvador. “Muitos saberes foram se perdendo. Hoje o povo Tupinambá não tem mais um saber construtivo próprio porque foi um dos primeiros a sofrer a ação dos colonizadores. Mas estão sendo feitos vários trabalhos de resgate desses saberes”, aponta.
Esse resgate colabora para lembrar que é impossível pensar a cultura indígena, da qual fazem parte os modelos construtivos, de forma homogênea. Mas um conhecimento comum que transpassa diversas culturas originárias ao redor das Américas é a relação com o território – outra grande epistemologia indígena que serve para repensar as habitações contemporâneas. “A terra em que você nasce, que você cultiva, que te dá alimento, que te dá abrigo, onde estão enterrados os seus antepassados, os seus encantados. É ali que você se conecta com a sua espiritualidade. Mais do que as edificações, os lugares naturais são muito importantes”, explica Luciano.

Pensar o território

A integração entre as construções e o território vai além das condicionantes ambientais que regem a boa arquitetura, como maximizar o aproveitamento da luz solar e dos ventos. Para o pensamento indígena, a natureza não é um recurso. Pensá-la enquanto parte da comunidade é essencial, o que eleva o patamar das discussões sobre sustentabilidade.
Envolvido no projeto arquitetônico do Centro de Fortalecimento da Cultura Xerente, na Aldeia Ktepo, no Tocantins, Tomaz Lotufo explica que a concepção da obra se deu primordialmente sobre essa relação com o território. “A árvore é um símbolo. Então no projeto, quando você olha para a frente da casa, vê a copa das árvores. Nas minhas costas estão as raízes, que é o pé da árvore, é o que sustenta essa estrutura, o que alimenta a possibilidade de fazer o ritual, trabalhar a cultura. Então o desenho desse território é feito a partir dessa visão de mundo”, explica.
A perspectiva indígena nos mostra que a verdadeira sustentabilidade surge de relações recíprocas com a natureza. Como aponta Ailton Krenak em "Ideias para adiar o fim do mundo", a humanidade não pode ser pensada como algo separado – ou superior. “Devíamos admitir a natureza como uma imensa multidão de formas, incluindo cada pedaço de nós, que somos parte de tudo.