Arquitetura
Restauro de igreja em Santa Felicidade ajuda no resgate de cultura quase perdida
O interior da igreja é ornamentado com pinturas artísticas e decorativas. Na terceira fase do restauro, elas também devem receber atenção especial. Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo | Carolina Werneck Bortolanza
Os quase 126 anos de história da Paróquia de São José e Santa Felicidade, em Curitiba, estão sendo revisitados pela obra de restauro da igreja. Dividido em três etapas – estrutural, luminotécnica e artística -, o processo está resgatando os detalhes da construção, que foi feita originalmente pelos imigrantes do bairro mais italiano da cidade.
Com arquitetura eclética, o prédio tem características construtivas puramente italianas, como explica o arquiteto Tobias Bonk Machado, responsável pelo restauro. É o caso da torre que abriga os sinos, uma construção separada do restante da igreja. “É muito da construção italiana fazer a torre separada”, diz o arquiteto. O padre Claudio Ambrozio, pároco de Santa Felicidade, lembra ainda que esse tipo de solução é muito comum na região do vêneto, de onde veio a maioria dos imigrantes do bairro. O campanário não foi feito ao mesmo tempo que o templo. Enquanto este foi inaugurado em 1891, aquele só passou a fazer parte do complexo em 1901.
De lá para cá, inúmeras obras foram realizadas na paróquia. Isso fica evidente, por exemplo, nas muitas camadas de tinta encontradas nas prospecções feitas para o restauro. Originalmente, a igreja de Santa Felicidade não tinha o tom de bege que ostenta já há muitos anos. “O que nós conseguimos levantar nas nossas pesquisas é que ela tinha uma coloração mais próxima do ocre, meio amarelada”, explica Machado. O plano é resgatar essa cor na terceira etapa do restauro. A fachada também foi modificada em uma ampliação na década de 1920. Essa modificação, no entanto, será mantida, uma vez que faz parte da história do edifício.
Restauro não é reforma
Quando uma antiga construção é restaurada, nem todas as alterações no original podem ser eliminadas. No caso dessa igreja, o arquiteto aponta que “em algum momento da história, foi colocada uma platibanda que me tampou a ponta dos telhados. A platibanda não estava no projeto original, mas está aí há muitos anos. A gente tem que ter sempre o equilíbrio do contexto histórico”.
Foi dele, aliás, a iniciativa de restaurar o prédio. “O alerta foi uma vez em que eu estava lendo o Evangelho e caiu cimento na minha cabeça. Isso nos abriu os olhos: ‘alguma coisa está passando'”, relata o padre, rindo. A preocupação com a segurança dos frequentadores da paróquia motivou a divisão do processo em etapas. Para a parte estrutural, que está em curso agora, está previsto um prazo de seis meses. Os estudos para a realização da obra, no entanto, levaram muito mais tempo. Desde 2015 Machado está levantando as necessidades e os detalhes da igreja. Depois veio a fase de captação de recursos e liberação dos órgãos públicos. Só então as obras foram, de fato, iniciadas.
“A cultura do restauro é muito confundida com a reforma, quando na verdade são campos totalmente diferentes. No restauro, temos que verificar técnicas, analisar os materiais e o contexto histórico à época da construção”, detalha o arquiteto. Para ganhar o apoio da comunidade, o padre Claudio entrou em campanha de conscientização durante as missas. Ele também expôs alguns materiais que foram retirados do prédio porque seu uso já estava inviável, como foi o caso de algumas estruturas de madeira. “Fiz questão de, domingo passado, deixar essas madeiras aqui na frente para que todos entendessem o motivo do restauro. Agora já sinto que eles estão achando bom que não se faça um remendo, mas uma restauração total. Alguns não entendem muito que restauro é recuperar o original, então explicamos direito a diferença entre reforma e restauração”, diz.
A igreja do bairro e o bairro da igreja
Assim como inúmeras outras igrejas erguidas por imigrantes, a de Santa Felicidade é protegida por uma profunda identificação com a comunidade que a cerca. Ali, muitos moradores são filhos, netos e bisnetos daqueles que ajudaram no processo de construção. Esse tipo de relação íntima e tradicional contribui para a preservação do patrimônio arquitetônico e religioso representado por ela. “A gente está entendendo que o processo construtivo foi muito em termos de mutirão. Os imigrantes fizeram eles mesmo, utilizando os materiais de que dispunham”, afirma Machado. O resultado disso é que algumas técnicas utilizadas ali não eram comuns para a época. Nas abóbadas internas, por exemplo, no lugar das tradicionais fasquias – ripas de madeira colocadas lado a lado para estruturar a argamassa do teto -, os construtores utilizaram tábuas.
Os aspectos construtivos são interessantes, mas o que lhes dá vida é a afinidade que conecta o local às pessoas que conviveram com ele durante uma vida toda. Padre Claudio aponta que, antes do início do restauro, a igreja recebia entre quatro e cinco casamentos por semana. Agora, quando um casal procura a paróquia para se casar, a secretaria informa que, provavelmente, haverá andaimes do lado de fora do prédio. “O que está acontecendo? Quem é da comunidade diz ‘meus pais casaram aqui, meus avós casaram aqui. Se tem um andaime, vou colocar umas flores nele e tudo bem. Não vou deixar de casar aqui porque a igreja precisa ser restaurada’. Já quem é de fora não vem mais”. Ele diz que, desde que o andaime foi instalado, o número de cerimônias realizadas ali caiu para uma média de quatro a cinco por mês.
Todo o dinheiro utilizado na primeira etapa das obras veio da realização de festas. Com o início do restauro, alguns comerciantes da região já se dispuseram a ajudar nas próximas fases, mas ainda não há acordos oficiais. “Vamos continuar realizando eventos para arrecadar, mas também gostaríamos de contar com a ajuda da comunidade de Santa Felicidade. Todos sentem que a igreja é uma referência para o bairro como um todo, não só para os católicos”, afirma o padre Claudio.
Um pedaço do Vêneto no Brasil
Por puro acaso, o início dos trabalhos de restauro coincidiu com a realização de um curso do dialeto da região do Vêneto na paróquia. O chamado “talian” e a cultura do Vêneto serão o tema de cinco encontros comandados pelos professores italianos Giorgia Miazzo Cavinato e Gianluca Parise. De acordo com Moisés Stival, um dos organizadores do curso, “a língua é hoje reconhecida como referência cultural brasileira por meio do Inventário Nacional de Diversidade Linguística do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional do Ministério da Cultura”.
Essa é uma maneira de manter esse dialeto vivo entre os descendentes dos imigrantes italianos no Brasil. Além do idioma, também fazem parte da programação aspectos culturais, históricos, gastronômicos e arquitetônicos daquela região do norte da Itália.
SERVIÇO
Curso de língua e cultura “taliana”
Local: Paróquia de São José e Santa Felicidade, Rua Manoel Ribas, 6.252, Santa Felicidade
Data: de 7 a 11 de agosto
Horário: Das 18h30 às 22h
Valor: R$ 200 (inclui 20 horas-aula e dois livros – “Cantando in Talian” e Descobrindo o Talian)
Inscrições: (41) 99663-0768 – Falar com Moisés Stival, ou pelo e-mail taliancuritiba@yahoo.com.
*Especial para a Gazeta do Povo.