Arquitetura

Restauro de igreja em Santa Felicidade ajuda no resgate de cultura quase perdida

Carolina Werneck*
03/08/2017 21:30
Thumbnail

O interior da igreja é ornamentado com pinturas artísticas e decorativas. Na terceira fase do restauro, elas também devem receber atenção especial. Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo | Carolina Werneck Bortolanza

Os quase 126 anos de história da Paróquia de São José e Santa Felicidade, em Curitiba, estão sendo revisitados pela obra de restauro da igreja. Dividido em três etapas – estrutural, luminotécnica e artística -, o processo está resgatando os detalhes da construção, que foi feita originalmente pelos imigrantes do bairro mais italiano da cidade.
Com arquitetura eclética, o prédio tem características construtivas puramente italianas, como explica o arquiteto Tobias Bonk Machado, responsável pelo restauro. É o caso da torre que abriga os sinos, uma construção separada do restante da igreja. “É muito da construção italiana fazer a torre separada”, diz o arquiteto. O padre Claudio Ambrozio, pároco de Santa Felicidade, lembra ainda que esse tipo de solução é muito comum na região do vêneto, de onde veio a maioria dos imigrantes do bairro. O campanário não foi feito ao mesmo tempo que o templo. Enquanto este foi inaugurado em 1891, aquele só passou a fazer parte do complexo em 1901.
Registro da inauguração da Paróquia de São José e Santa Felicidade, em 1891. Posteriormente, a fachada original foi desmanchada para dar lugar a uma ampliação da nave. Foto: Arquivo da Paróquia
Registro da inauguração da Paróquia de São José e Santa Felicidade, em 1891. Posteriormente, a fachada original foi desmanchada para dar lugar a uma ampliação da nave. Foto: Arquivo da Paróquia
De lá para cá, inúmeras obras foram realizadas na paróquia. Isso fica evidente, por exemplo, nas muitas camadas de tinta encontradas nas prospecções feitas para o restauro. Originalmente, a igreja de Santa Felicidade não tinha o tom de bege que ostenta já há muitos anos. “O que nós conseguimos levantar nas nossas pesquisas é que ela tinha uma coloração mais próxima do ocre, meio amarelada”, explica Machado. O plano é resgatar essa cor na terceira etapa do restauro. A fachada também foi modificada em uma ampliação na década de 1920. Essa modificação, no entanto, será mantida, uma vez que faz parte da história do edifício.

Restauro não é reforma

Quando uma antiga construção é restaurada, nem todas as alterações no original podem ser eliminadas. No caso dessa igreja, o arquiteto aponta que “em algum momento da história, foi colocada uma platibanda que me tampou a ponta dos telhados. A platibanda não estava no projeto original, mas está aí há muitos anos. A gente tem que ter sempre o equilíbrio do contexto histórico”.
A Igreja de São José e Santa Felicidade em registro de 1942. Foto: Arquivo da Paróquia
A Igreja de São José e Santa Felicidade em registro de 1942. Foto: Arquivo da Paróquia
Foi dele, aliás, a iniciativa de restaurar o prédio. “O alerta foi uma vez em que eu estava lendo o Evangelho e caiu cimento na minha cabeça. Isso nos abriu os olhos: ‘alguma coisa está passando'”, relata o padre, rindo. A preocupação com a segurança dos frequentadores da paróquia motivou a divisão do processo em etapas. Para a parte estrutural, que está em curso agora, está previsto um prazo de seis meses. Os estudos para a realização da obra, no entanto, levaram muito mais tempo. Desde 2015 Machado está levantando as necessidades e os detalhes da igreja. Depois veio a fase de captação de recursos e liberação dos órgãos públicos. Só então as obras foram, de fato, iniciadas.
O padre Claudio Ambrozio, pároco da igreja, mostra os detalhes da obra na parte externa do prédio. A ideia de restaurar a igreja veio depois que pedacinhos de cimento caíram sobre ele durante uma missa. Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo
O padre Claudio Ambrozio, pároco da igreja, mostra os detalhes da obra na parte externa do prédio. A ideia de restaurar a igreja veio depois que pedacinhos de cimento caíram sobre ele durante uma missa. Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo
“A cultura do restauro é muito confundida com a reforma, quando na verdade são campos totalmente diferentes. No restauro, temos que verificar técnicas, analisar os materiais e o contexto histórico à época da construção”, detalha o arquiteto. Para ganhar o apoio da comunidade, o padre Claudio entrou em campanha de conscientização durante as missas. Ele também expôs alguns materiais que foram retirados do prédio porque seu uso já estava inviável, como foi o caso de algumas estruturas de madeira. “Fiz questão de, domingo passado, deixar essas madeiras aqui na frente para que todos entendessem o motivo do restauro. Agora já sinto que eles estão achando bom que não se faça um remendo, mas uma restauração total. Alguns não entendem muito que restauro é recuperar o original, então explicamos direito a diferença entre reforma e restauração”, diz.

A igreja do bairro e o bairro da igreja

Assim como inúmeras outras igrejas erguidas por imigrantes, a de Santa Felicidade é protegida por uma profunda identificação com a comunidade que a cerca. Ali, muitos moradores são filhos, netos e bisnetos daqueles que ajudaram no processo de construção. Esse tipo de relação íntima e tradicional contribui para a preservação do patrimônio arquitetônico e religioso representado por ela. “A gente está entendendo que o processo construtivo foi muito em termos de mutirão. Os imigrantes fizeram eles mesmo, utilizando os materiais de que dispunham”, afirma Machado. O resultado disso é que algumas técnicas utilizadas ali não eram comuns para a época. Nas abóbadas internas, por exemplo, no lugar das tradicionais fasquias – ripas de madeira colocadas lado a lado para estruturar a argamassa do teto -, os construtores utilizaram tábuas.
A igreja aparece ao fundo dessa foto, feita em 1920. No primeiro plano, a Casa dos Arcos, que hoje abriga um restaurante famoso do bairro. Foto: Arquivo da Paróquia
A igreja aparece ao fundo dessa foto, feita em 1920. No primeiro plano, a Casa dos Arcos, que hoje abriga um restaurante famoso do bairro. Foto: Arquivo da Paróquia
Os aspectos construtivos são interessantes, mas o que lhes dá vida é a afinidade que conecta o local às pessoas que conviveram com ele durante uma vida toda. Padre Claudio aponta que, antes do início do restauro, a igreja recebia entre quatro e cinco casamentos por semana. Agora, quando um casal procura a paróquia para se casar, a secretaria informa que, provavelmente, haverá andaimes do lado de fora do prédio. “O que está acontecendo? Quem é da comunidade diz ‘meus pais casaram aqui, meus avós casaram aqui. Se tem um andaime, vou colocar umas flores nele e tudo bem. Não vou deixar de casar aqui porque a igreja precisa ser restaurada’. Já quem é de fora não vem mais”. Ele diz que, desde que o andaime foi instalado, o número de cerimônias realizadas ali caiu para uma média de quatro a cinco por mês.
A igreja cumpre um papel importante na celebração de casamentos. Na foto, cerimônia realizada em 1968. Foto: Arquivo da Paróquia
A igreja cumpre um papel importante na celebração de casamentos. Na foto, cerimônia realizada em 1968. Foto: Arquivo da Paróquia
Todo o dinheiro utilizado na primeira etapa das obras veio da realização de festas. Com o início do restauro, alguns comerciantes da região já se dispuseram a ajudar nas próximas fases, mas ainda não há acordos oficiais. “Vamos continuar realizando eventos para arrecadar, mas também gostaríamos de contar com a ajuda da comunidade de Santa Felicidade. Todos sentem que a igreja é uma referência para o bairro como um todo, não só para os católicos”, afirma o padre Claudio.

Um pedaço do Vêneto no Brasil

Por puro acaso, o início dos trabalhos de restauro coincidiu com a realização de um curso do dialeto da região do Vêneto na paróquia. O chamado “talian” e a cultura do Vêneto serão o tema de cinco encontros comandados pelos professores italianos Giorgia Miazzo Cavinato e Gianluca Parise. De acordo com Moisés Stival, um dos organizadores do curso, “a língua é hoje reconhecida como referência cultural brasileira por meio do Inventário Nacional de Diversidade Linguística do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional do Ministério da Cultura”.
A primeira etapa das obras de restauro da Igreja de São José e Santa Felicidade deve ficar pronta em seis meses. Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo
A primeira etapa das obras de restauro da Igreja de São José e Santa Felicidade deve ficar pronta em seis meses. Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo
Essa é uma maneira de manter esse dialeto vivo entre os descendentes dos imigrantes italianos no Brasil. Além do idioma, também fazem parte da programação aspectos culturais, históricos, gastronômicos e arquitetônicos daquela região do norte da Itália.

SERVIÇO

Curso de língua e cultura “taliana”
Local: Paróquia de São José e Santa Felicidade, Rua Manoel Ribas, 6.252, Santa Felicidade
Data: de 7 a 11 de agosto
Horário: Das 18h30 às 22h
Valor: R$ 200 (inclui 20 horas-aula e dois livros – “Cantando in Talian” e Descobrindo o Talian)
Inscrições: (41) 99663-0768 – Falar com Moisés Stival, ou pelo e-mail taliancuritiba@yahoo.com.
*Especial para a Gazeta do Povo.

LEIA TAMBÉM