Guto Requena é o que podemos chamar de arquiteto engajado com os debates de sua profissão. Além de apresentar o programa “Nos Trinques”, do canal de TV a cabo GNT, de ter feito parte do núcleo de pesquisa Nomads (Núcleo de Estudos de Habitares Interativos), da Universidade de São Paulo (USP), e de sua dissertação de mestrado, ele ainda mantém um escritório em São Paulo. Entre os projetos em desenvolvimento está o megaescritório do Google na cidade, que está dando o que falar na imprensa, mas sobre o qual ele se recusa a comentar.
Parte de uma nova geração de arquitetos que tem de lidar com a transição da cultura analógica para a digital, com apenas 32 anos ele é referência no Brasil e no exterior por sua pesquisa sobre as questões da arquitetura contemporânea frente às transformações tecnológicas. Mais do que pensar no futuro, suas descobertas e experimentações são uma plataforma para se olhar para o passado.
Como duas instâncias tão contraditórias podem fazer parte de um mesmo discurso? Ele é bastante enfático ao responder: “priorizando o homem”.
Você trabalha com a ideia da cibercultura, da passagem do analógico para o digital. Como essa transição se tornou um tema para a arquitetura?
As duas questões são associáveis, porque a cultura digital é, na verdade, a cultura geral atualmente. A totalidade da nossa vida está relacionada a tecnologias, inclusive a arquitetura, que hoje se baseia em processos de produção computadorizados. O fundamental é pensar que a arquitetura e o design atuais são frutos da cibercultura. Como designer e arquiteto, me interessa entender as transformações dessa nova cultura. Também me fascinam as questões da brasilidade e dos novos modos de vida. Refletindo sobre esses três pontos, posso criar em qualquer escala.
Em seu trabalho, você defende a memória e a identidade do morador nos projetos. Alguns arquitetos, por outro lado, ficam horrorizados ao verem seus projetos “deturpados” por objetos imprevistos. Existe regra estética na arquitetura?
Não há regras. A pior coisa que pode acontecer dentro da sua própria casa é que outra pessoa estabeleça regras para você mesmo. O arquiteto tem de saber a hora de parar e quando deixar entrar o morador. Acho o afeto tão importante que peço para meus clientes buscarem objetos na casa dos avós, tios, pais. Às vezes o cliente não está muito convencido de que aquela peça funciona, mas no fim entende o processo e dou garantia de 100% de satisfação.
O bom projeto é aquele que resgata memórias pessoais e não o que tem
a cara do arquiteto.
a cara do arquiteto.
Como a memória pode habitar harmonicamente o mesmo espaço de novas tecnologias?
Esse é o desafio do meu escritório: ler as tecnologias digitais como um suporte à memória. Chamamos isso de “arquitetura híbrida”, que combina o analógico e concreto ao digital. Até pouco tempo atrás, a arquitetura era feita de cores, texturas, formas e iluminação. Hoje é possível adicionar uma nova camada a essas, que são as novas tecnologias como suporte poético. A coleção “Era Uma Vez” [conjunto de vasos ondulados, desenhados a partir da representação gráfica dos arquivos de áudio das histórias contadas pela avó de Guto], que lancei agora em Milão, é um exemplo muito claro de como é possível integrar as novas tecnologias à brasilidade e à memória.
Uma característica marcante dos seus projetos é a interação com os ambientes, digitalmente falando. Como exercitar o pertencimento urbano, revitalizar o espaço público e contornar os problemas causados pelo individualismo e pela valorização do privado? Você acha que intervenções artísticas urbanas, virada cultural, uso de bicicletas podem influenciar a formatação dos espaços de moradia, trabalho e convívio?
Com certeza. O fundamento da arquitetura é o homem. Eu não quero projetar uma casa, uma roupa ou um objeto, apenas. Quero projetar relações humanas. O projeto de uma casa pode fazer uma família feliz ou tornar a convivência um caos! A mesma coisa acontece com a cidade. Esse movimento de ocupação da cidade é muito interativo e importante. Pessoalmente, sou cicloativista, vendi meu carro há anos, vou a manifestações. Sou dessa geração nova que quer viver de forma diferente.
Você é bastante crítico em relação à arquitetura modernista brasileira, ao fato de estarmos ainda tão apegados a preceitos dessa vanguarda, que esquecem os de renovar. Como isso se tornou um problema para o Brasil?
Todos os arquitetos brasileiros foram influenciados pelo modernismo, e eu não sou diferente. Tivemos aqui arquitetos incríveis, como Lina Bo Bardi, Paulo Mendes da Rocha e o próprio Oscar Niemeyer, profissionais que eu admiro. Mas, ao mesmo tempo em que bebo dessa fonte, acho que o modernismo está enraizado de um jeito que impossibilita pensarmos questões mais contemporâneas. O ensino é muito moderno, também. Apenas no Nomads (Núcleo de Estudos de Habitares Interativos), no mestrado na USP, fui conhecer um debate mais contemporâneo. As formas do modernismo são muito cartesianas, os materiais foram inovadores naquela época, mas o que podemos aproveitar no Brasil vai muito além do concreto e do vidro. Existem outras coisas aí apenas esperando para serem experimentadas, e não fazemos isso por causa desse apego ao modernismo. O Oscar Niemeyer é a maior prova disso. É o maior arquiteto do Brasil, mas há décadas ele projeta da mesma forma. O governo investe muito dinheiro em obras dele, ao invés de abrir concursos para premiar as melhores ideias e soluções, independentemente do autor, para descobrir gente nova e contribuir com novas questões.
Você acredita que sua ligação forte com a sua família influenciou nessa percepção da arquitetura?
Muito! Mesmo com meus pais tendo se separado quando eu era muito novo, fui criado em um ambiente com muito amor, o que certamente moldou meu olhar. Além disso, cresci em um sítio, com cachorro, cavalo e horta. Foi muito importante, realmente.
O modernismo também é ponto de partida para outra questão que você coloca, a da brasilidade. Essa vanguarda tentou dar respostas para isso e, em até certo ponto, obteve sucesso. Você já conseguiu conceituar o que é a brasilidade?
Ainda estou procurando uma resposta, mas não acredito que seja uma questão estética. Tem o clichê de mulata, futebol e Carmen Miranda, que é importante ser considerado, mas vejo uma necessidade grande de repensar esse estereótipo e criar uma definição mais contemporânea. Brasilidade, para mim, tem a ver com a mestiçagem de raças e culturas. São as cores, é colocar a cadeira na rua para fofocar com o vizinho, é a sobreposição de texturas como feito em um patchwork.