O arquiteto e designer Guto Requena não é daquelas pessoas que sabia que iria seguir a profissão desde pequeno. Mas algumas de suas brincadeiras de infância no sítio onde vivia com os pais, em Araçoiabinha da Serra, interior de São Paulo, davam algumas pistas: cabanas elaboradas no meio da sala, desenhos nas carteiras do colégio e as mudanças constantes na decoração e na disposição dos móveis do quarto eram algumas delas. Tinha até inauguração do "novo quarto" para a família.
Formado pela Universidade de São Paulo (USP) em São Carlos, Requena foi conhecer arquitetos já na faculdade. No mundo acadêmico, mergulhou durante seu mestrado em pesquisas sobre habitares interativos, que unem a tecnologia ao morar. Aos 41 anos, com seu estúdio consolidado em São Paulo e autor de projetos impactantes, ele vai encarar em 2021 um novo desafio: o de integrar o time do Queer Eye Brasil.
A versão brasileira, que estreia esse ano na Netflix (ainda sem data específica), é baseada em Queer Eye, série norte-americana vencedora de três Emmy Awards em 2018. Em cada episódio, os apresentadores, apelidados de fab five (os "cinco fabulosos") auxiliam o participante com os seus conhecimentos e impulsionam uma melhora de vida e resgate da autoestima. O programa vai além ao tratar ainda de temas como diversidade, empatia e tolerância.
Requena será o responsável pela área de design; na versão americana, é o designer de interiores Bobby Berk quem repagina a casa dos participantes, em poucos dias. "Estou muito honrado de fazer parte desse time, é um projeto gigante da Netflix, uma das séries mais assistidas em 190 países", frisa Guto.
O arquiteto assistiu à primeira versão do programa, em 2003, quando ainda se chamava "Queer Eye For the Straight Guy". "Teve um impacto enorme em mim ver cinco homens empoderados e felizes. Ali eu vi que era ok ser gay. Nunca foi tão importante um programa como esse neste momento, para falar de diversidade, autoestima e mostrar o potencial do design em transformar nossas vidas", falou Requena em entrevista por telefone para HAUS.
Além do programa, ele vem lidando com outra novidade na vida: a de ser "pai de pet". Enquanto conversava com a reportagem, derretia-se com Amália e Cazuza, dois galgos italianos que chegaram à casa do arquiteto nesse período prolongado de quarentena. "A casa está de pernas para o ar, mas é assim. A casa em que a gente mora é bagunçada, cheia de cicatrizes. É isso que faz a nossa casa ser um lar. As imperfeições, aquela cadeira da vó, um objeto de infância. A casa do futuro não é toda branca, minimalista, escandinava. Nós somos brasileiros, a casa precisa ter cor, brasilidade" acredita.
O morar pós-pandemia
A redescoberta da casa foi uma das marcas deixadas na sociedade durante a pandemia do novo coronavírus. Com mais tempo dentro do lar, Requena pontua que se antecipou o rompimento de algo que vem se transformando desde a década de 1960, mas ainda persiste: a casa ocidental no padrão tripartite, com área social, íntima e de serviços. "Esse modelo está em xeque. Temos desde os anos 1980, 1990, a cozinha americana, a integração de banheiros com o quarto. E a pandemia acelerou isso. O arquiteto que desenha quarto, sala e cozinha está fadado a ficar ultrapassado. Desenhar o comer, o trabalhar, o receber. É dessa forma que a casa fica mais dinâmica, com a possibilidade de coautoria com o morador" , frisa.
Fora a maior necessidade de espaço, novas configurações e elementos (com o comércio registrando recordes com as vendas on-line), o brasileiro, salienta Requena, descobriu algumas deficiências da casa, como a iluminação, por exemplo. "Não existe no Brasil o hábito de usar uma luz quente, e agora as pessoas estão investindo mais nisso, em mobiliários, em reformas. Mas estamos, claro, falando de um público privilegiado".
Tecnologia e projetos
Com quatro grandes núcleos (de arquitetura, interiores, urbanismo e design de produto), o estúdio de Requena, em São Paulo, tem um portfólio diverso: eles assinam desde a loja da Hermès até projetos sociais e mobiliários urbanos. Depois do período na área acadêmica, o arquiteto resolveu cair no mercado, mas trouxe a sua pesquisa sobre tecnologia e cibercultura para o trabalho.
O estúdio conta, por exemplo, com o Juntx, um laboratório de estudos de empatia, design e tecnologia, de onde saem instalações imersivas e experiências que estimulam a comunicação entre as pessoas. Uma das mais recentes é o "Heartbits", um projeto 100% digital: o aplicativo, pensado no início da pandemia do novo coronavírus, em março do ano passado, coleta os batimentos cardíacos e permite que a pessoa envie-os a quem quiser. "Pensamos em criar esse app nesse período esquisito para gerar gentileza. De poder receber o batimento cardíaco da avó que está isolada, de um amigo em outro país. Acredito que a tecnologia é uma saída para sermos mais empáticos, nos conhecermos", diz Requena.
Outra marca do estúdio são os projetos de rua e mobiliários urbanos, como o "empatias mapeadas", uma produção interativa feita em parceria com o Sesc-SP. A estrutura criada permite a conversa e a troca entre pessoas. Outro exemplo é a instalação "meu coração bate como o seu", na Praça da República, criada em homenagem ao ativismo LGBT no Brasil. "O papel da arquitetura e do design é ser ativista, e não só desenhar uma cadeira bonita. Cada um, na sua área, deveria encontrar um ativista dentro de si", crava Requena. "Quero poder melhorar as características das cidades. Precisamos falar de amor nessa era de ódio".
Sobre o Queer Eye Brasil, o arquiteto não pôde adiantar mais nenhum detalhe. Mas, a contar pelo que produz no estúdio, pode-se esperar que levará projetos igualmente surpreendentes para a casa dos personagens da versão brasileira do reality.