O envelhecimento é um processo natural, lento, gradual e inevitável. Por isso, não adianta tratar como tabu. Mais cedo ou mais tarde, todos precisarão de adaptações em casa para continuar a viver bem. E a arquiteta mineira radicada em São Paulo Flavia Ranieri, 45 anos, é uma das principais referências nesse tipo de arquitetura, batizada de geroarquitetura, com especialização na área pelo Hospital Albert Einstein.
Recentemente, Flavia esteve em Curitiba para a montagem do decorado do empreendimento Bioos, da construtora Laguna, no Juvevê, e conversou com HAUS com exclusividade. O projeto de interiores do residencial para pessoas com mais de 60 anos é assinado por ela.
Afinal, o que é geroarquitetura?
É pensar na arquitetura voltada para o público de 60 anos ou mais, quando se começa a enfrentar declínios físicos, cognitivos, visuais, auditivos e de mobilidade, por exemplo. Então, é pensar em como fazer arquitetura para a pessoa continuar fazendo o que gosta de fazer. É deixar a vida mais fácil. Não é arquitetura pensada em saúde, é mais voltada para prevenção e atividades cotidianas.
E como faz para adaptar tudo isso?
Não é adaptar tudo. Não é que do dia para a noite a pessoa acorda idosa. É um processo gradual e lento, e a casa vai fazer esse processo de adaptação gradual e lento junto com a pessoa. O legal é pensar em uma casa que tenha uma infraestrutura básica e, depois, caso seja necessário, seja fácil, simples e flexível fazer as adaptações, sem muita obra. Tem que pensar que a casa vai te acompanhar ao longo da vida. É uma visão inteligente de projeto.
Como você decidiu por essa área específica da arquitetura?
Começou quando eu já morava em São Paulo, meus irmãos em outras cidades e meus pais ainda residiam em Belo Horizonte. Minha mãe caiu da escada. Ela tinha cerca de 60 anos. Foi descer de meia a escada de madeira encerada. Isso acendeu o sinal amarelo. Como vai ser quando os pais envelhecerem? Na cultura latina, os idosos vão viver na casa dos filhos. Mas, no meu caso, na época, ninguém morava lá. Ninguém queria se deslocar, nem os meus pais. Então, decidi deixar a casa mais segura para eles. Para não ter um acidente sério. Para ficarem independentes por muito tempo. Fui pesquisar e só havia coisas hospitalares. Mas eu não queria nada estereotipado. Entendi que tinha um mercado gigante para peças de design para a área do envelhecimento. Algo que seja seguro, mas bonito, e uma coisa que não seja estereotipada e que não jogue na sua cara o tempo todo que você está ficando frágil e envelhecendo. Tem que ser algo sutil.
O que muda na forma de projetar para o público com mais de 60 anos?
Coisas simples que fazem toda a diferença. Por exemplo, se você coloca um jovem em um estúdio com lavanderia comunitária na parte de baixo do edifício, ele se adapta super bem. Mas as pessoas mais experientes ainda gostam de ter um tanque para deixar coisas de molho, para lavar na mão, e de fazer isso com privacidade. Outro ponto é o quarto com porta. A questão da privacidade é muito forte e eles não se adaptam a lofts sem porta ou com cortinas. A memória afetiva é uma diferença também. A casa tem que ter cara de lar.
O apartamento decorado do Bioos, por exemplo, é diferente de outros decorados. Tem mais vida, é mais cheio de objetos, tem história. Ao contrário do jovem, que tá começando a vida e quase não tem coisa para carregar. E para isso precisa ter muito armário para eles poderem guardar seus objetos, para expor os porta-retratos. Se o idoso percebe que as coisas dele não cabem ali, isso é decisivo para ele não querer se mudar.
Outro elemento interessante é que o lavabo é também um banheiro completo que pode ser utilizado pelas visitas, mantendo a privacidade do banheiro principal. E o que deveria ser ideal de vida para todos nós: portas e áreas de circulação largas. Porque a gente nunca sabe quando vai quebrar a perna e vai precisar de uma cadeira de rodas, de um enfermeiro. A gente esquece que o idoso pode precisar andar com um cuidador lado a lado e, portanto, um corredor mais largo consegue dar conta de duas pessoas andando lado a lado.
E sobre acabamentos?
Os pisos precisam ser todos antiderrapantes. E quanto mais fácil de limpar, melhor. Isso é bem importante. O público sênior não quer encerar e limpar. Quer praticidade. No banheiro, use o vidro temperado laminado. Se quebrado, ele fica em caquinhos que não cortam e que ficam colados na lâmina do meio. É importante ressaltar que é fundamental evitar os degraus e os desníveis. Até no banheiro, por exemplo. Entre a área molhada e a seca, para a água não escapar, o desnível é só de meio centímetro. A bancada tem 80 centímetros e permite que a cadeira de rodas entre debaixo, se precisar. E, caso a pessoa tenha mobilidade, mas não consiga ficar em pé muito tempo, ela pode entrar e se sentar no chuveiro ou em frente ao espelho e fazer tudo de forma confortável. E o principal: ele ou ela pode fazer sozinho. É dar independência para a pessoa.
E os tapetes? Como evitar acidentes com eles?
Normalmente, as pessoas falam para tirar, mas os tapetes têm funções importantes. Trazem aconchego, ajudam no isolamento acústico e no conforto térmico. E as pessoas com mais idade sentem mais frio, principalmente nos pés. Então, se é para colocar, vamos tomar todos os cuidados. A dica é usar fita dupla face nas bordas e tentar colocar parte dos tapetes sempre embaixo de mobiliários. E lembre que o tamanho do pelo do tapete faz toda a diferença. Quanto mais peludo, maior a chance de tropeçar. E, caso a pessoa tenha cadeira de rodas, pode enroscar. Então, sempre prefira tapete de pelo curto.
Com relação a tomadas e sistemas elétricos, quais os cuidados e dicas?
As tomadas são todas mais altas, porque se abaixar geralmente é desconfortável. E os interruptores são um pouco mais baixos que o comum, para que a pessoa na cadeira de rodas também consiga alcançar sem esforço. Isso é o básico. Mas também existe a tomada inteligente ligada ao fogão com um sensor. Se ele captar qualquer fumaça, desliga tudo. O que evita acidentes com fogão ou ferro de passar roupa, por exemplo. Outra coisa: os cortineiros iluminados não são só estéticos. Se à noite a pessoa se levanta, ele acende a luz suave, que não vai ofuscar a visão nem acordar o parceiro ou a parceira que está dormindo. Isso te ajuda a chegar ao banheiro com segurança.
E para quem tem só uma chance de comprar o imóvel da vida? Que dicas você dá para a pessoa observar na escolha e nas reformas?
Porta larga, sem desnível, sem degraus. Quanto mais flexível as paredes puderem ser, melhor, como o dry wall, por exemplo. No momento você pode não precisar, mas, se precisar, será mais fácil de fazer as mudanças.
Prefira apartamentos com janela e vista. Isso é importante porque é contato com a natureza, ajuda a se orientar no tempo e espaço, se está chovendo, se está noite, ajuda no ciclo circadiano.
E opte por banheiros maiores. Não precisa ser gigante, como pede a norma de acessibilidade. Mas um pouco maior que o normal sim. E se não der para reformar tudo, deixe pelo menos um banheiro pronto, de forma que você possa transformá-lo em acessível depois, caso precise. Deixe-o com uma estrutura básica, ralo linear e desnível de box bem pequeno. E pense nos acabamentos. Prefira metal monocomando e pisos antiderrapantes. Acho que não precisa inventar a roda, não.
E, a última dica é: quanto mais simples o eletrodoméstico, melhor. Quanto menos botão, melhor. Às vezes, a gente compra algo sofisticado e usa no máximo três funções. Tem que se conhecer e saber o que vai usar. Tenho uma cliente de 84 anos, por exemplo, que não quis muito espaço de jantar, mas quis uma grande bancada na cozinha. Ela disse que precisa da área porque costuma comprar tudo pronto e não cozinha. Então, chama os amigos e deixa tudo arrumadinho sobre a bancada.
No caso das doenças de Alzheimer e Parkinson, existem dicas específicas para aplicar no projeto da casa?
As dicas são as mesmas, mas com algumas soluções diferentes. A ideia é sempre dar autonomia para a pessoa. Quem tem essas doenças no início do processo fica frustrado de pedir ajuda para o outro ou de ficar perguntando a mesma coisa várias vezes. Então, o que pode ajudar bastante é espalhar dicas pela casa para que ele encontre as coisas sozinho. Coloque etiqueta nos armários. A pessoa pode não lembrar onde ficam os copos, mas vai procurar na cozinha e vai conseguir encontrar sozinha. Em vez de armários fechados, prefira os transparentes. No caso do Alzheimer, o que não se vê, não existe. Então, você possibilita que a pessoa lembre das roupas ela tem, por exemplo.
Outra dica boa é escolher junto com a pessoa conjuntos de roupas para a semana e já deixar separado dentro do armário. Isso evita uma série de problemas. E, para Parkinson, as barras em casa são importantes em caso da perda de equilíbrio e o design específico de talheres e utensílios domésticos. Por exemplo, talheres com pegadas mais largas e não tão delicadas, e xícaras mais robustas, com alças e de um material que não quebre caso caia no chão.
Temos que ter cuidado com verdades absolutas. Digo isso no caso do box convencional. Para cadeirantes ou para quem tem cuidador, a cortina no banheiro é mais indicada, porque facilita os movimentos de ambos. E prefira sempre chuveiro com chuveirinho, a ducha manual. De novo: a pessoa consegue se lavar sozinha. Isso dá dignidade para a pessoa. Um cuidador ou um familiar não precisar ficar intervindo no processo todo. Faz toda a diferença.
E falando especificamente de mobiliário. O que observar na hora de adquirir?
Tem que experimentar tudo. Não existe certo e errado porque as pessoas são diferentes. E não terceirize essa tarefa. Experimente você, leve o tempo que levar. Em geral, assento firme ajuda na hora de levantar e almofadas no sofá ajudam a diminuir a profundidade, fazendo com que seja mais fácil se sentar ou levantar. Opte por opções com braços e, no caso de cadeiras de jantar, escolha cadeiras abertas, para facilitar a limpeza caso a pessoa tenha costume de derrubar comida durante as refeições. Bordas arredondadas são importantes. Mas nem sempre é possível. Se tiver quina viva em peças baixas, use o truque de colocar peças altas para chamar atenção para a existência de obstáculo. Móveis circulares ajudam na liberdade de movimento e os móveis soltos dão mais flexibilidade para a casa, que vai mudando conforme a necessidade. Um pufe, por exemplo, é multiuso. Pode ser descanso para os pés, banquinho, mesinha lateral. Sofás que levantam são caros e muito profundos. Não precisa gastar um zilhão. Quanto mais flexível for o móvel, melhor.
E a iluminação?
É fundamental reforçar a iluminação nas áreas de trabalho e bancadas. Mas não precisa iluminar tudo igual laboratório com luz branca. Prefira abajures. Não esqueça que a casa precisa ser aconchegante. E não precisa trocar tudo. Troca o que você mais precisar. Uma luminária maior e mais articulada perto da cama, por exemplo. Em geral, estudos mostram que quanto mais a pessoa aceita as mudanças e vai se ajustando, mais feliz ela é. À medida que o problema acontece, ela resolve e continua a vida. Quem tem resistência não muda e começa a ficar infeliz com as transformações inevitáveis.