Opinião
Arquitetura
Concurso Museu Marítimo do Brasil: um debate sobre diferentes tempos arquitetônicos
Detalhe da proposta que venceu o concurso de projeto para o Museu Marítimo do Brasil, no Rio de Janeiro.
A presença de profissionais de Arquitetura e Urbanismo competentes e engajados é uma das condições fundamentais na busca por uma cidade melhor. Mas essa batalha contínua depende também de políticas públicas adequadas e de um cuidado com o processo de reflexão e escolha do que cabe em diferentes contextos na complexa malha fragmentada das cidades contemporâneas. Qualquer elemento arquitetônico ou intervenção no espaço público gera um impacto positivo ou negativo.
Como a cidade é de todos, precisamos de ferramentas democráticas para definir coletivamente o que queremos dela e nela, tornando-as mais justas e com oportunidades para todos os habitantes. O alto teor de subjetividade da arquitetura desloca a questão fundamental do produto para o processo, para a sistematização de ferramentas transparentes e democráticas. E, neste sentido, o meio mais justo para enfrentar os complexos desafios que se apresentam é o concurso público de projetos.
O objetivo de um concurso vai muito além da construção do objeto arquitetônico ou urbanístico, pois enseja a participação não apenas de equipes técnicas do país inteiro, mas também da sociedade, e gera oportunidades para jovens profissionais terem acesso a grandes projetos. Trata-se da melhor forma de inovar e transformar nossas cidades, materializando os acúmulos éticos, sociais, tecnológicos e ambientais de determinado momento.
Um caso exemplar foi o recente Concurso de Arquitetura do Museu Marítimo do Brasil, na orla da área central da cidade do Rio de Janeiro, promovido pelo Departamento Cultural do Abrigo do Marinheiro e organizado pelo Departamento do Rio de Janeiro do Instituto de Arquitetos do Brasil. O debate público foi impulsionado pelo elevado número de equipes inscritas (191) e de projetos concorrentes (110), originários de diversos estados. A divulgação dos vencedores contribuiu para as reflexões sobre a cidade. Dificilmente haverá um consenso em relação à escolha do júri com projetos cheios de especificidades exaustivamente trabalhadas pelas equipes. É muito saudável que esse consenso não exista. Precisamos reaprender a lidar com o contraditório, à medida que ele incentiva a constante transformação do nosso modo de ver a arquitetura e sua interação com o espaço urbano no qual vivemos.
A proposta vencedora para o Museu Marítimo do
Brasil, da equipe coordenada pelo arquiteto Rodrigo Quintella Messina,
compreende o “molhe” histórico (uma espécie de píer, mas com fundação mais
sólida), de 1877, como elemento central do conjunto. Junto com a paisagem
natural da Baía de Guanabara, atemporal, ele resume a relação da cidade com o
mar, que ficou interrompida durante décadas pelo Elevado da Perimetral –
demolido em 2013 – e pelo galpão temporário que ocupa o molhe desde os anos 1990.
O projeto revela a paisagem que ficou perdida por tantos anos e provoca um
debate sobre a relação entre os diferentes tempos arquitetônicos que compõem o
cenário complexo e instigante das grandes cidades.
Brasil, da equipe coordenada pelo arquiteto Rodrigo Quintella Messina,
compreende o “molhe” histórico (uma espécie de píer, mas com fundação mais
sólida), de 1877, como elemento central do conjunto. Junto com a paisagem
natural da Baía de Guanabara, atemporal, ele resume a relação da cidade com o
mar, que ficou interrompida durante décadas pelo Elevado da Perimetral –
demolido em 2013 – e pelo galpão temporário que ocupa o molhe desde os anos 1990.
O projeto revela a paisagem que ficou perdida por tantos anos e provoca um
debate sobre a relação entre os diferentes tempos arquitetônicos que compõem o
cenário complexo e instigante das grandes cidades.
Ao elevar o volume principal do solo, o projeto recupera o acesso público a um trecho muito especial da cidade, que agora se torna um grande espaço coberto, ventilado e protegido do impiedoso sol carioca. Esse novo equipamento cultural reforça a vocação do local para encontros e interação social.
Esse gesto projetual evoca grandes mestres da nossa arquitetura ao reafirmar uma das estratégias mais celebradas da tradição brasileira: a de museus como espaços de experimentação. Presente do MAM de Reidy ao Cais das Artes de Mendes da Rocha, essa estratégia tem seu mais emblemático exemplo no vão do MASP, de Lina Bo Bardi, e na vitalidade urbana que ele gera em um contexto tão simbólico para a cidade de São Paulo como é a Avenida Paulista. Sem insinuar comparação entre autores, não é exagero conjecturar que o simbolismo da orla recuperada do Centro talvez seja tão representativo para o Rio quanto a vitalidade da Paulista é para São Paulo.
O espaço sob o edifício suspenso, no entanto, é
apenas o final do percurso arquitetônico ao qual o projeto convida o visitante.
Ele dá acesso ao submarino e outras embarcações visitáveis e ao espaço na ponta
do molhe, onde um café possibilitará aos moradores e turistas a experiência de
um visual espetacular, tanto da Baía da Guanabara quanto de um trecho muito
especial do Rio. Daquele ponto, a magia da cidade se revela, com o convívio de
edifícios que nos contam histórias de cinco séculos de arquitetura.
apenas o final do percurso arquitetônico ao qual o projeto convida o visitante.
Ele dá acesso ao submarino e outras embarcações visitáveis e ao espaço na ponta
do molhe, onde um café possibilitará aos moradores e turistas a experiência de
um visual espetacular, tanto da Baía da Guanabara quanto de um trecho muito
especial do Rio. Daquele ponto, a magia da cidade se revela, com o convívio de
edifícios que nos contam histórias de cinco séculos de arquitetura.
O percurso tem o cuidado de permitir uma lenta construção de expectativa, em que a paisagem infinita se insinua à primeira aproximação, ainda no continente, mas convida antes a uma promenade arquitetônica cheia de simbolismo. Para “embarcar” no grande volume horizontal flutuante sobre o molhe, o visitante precisará ingressar por outro volume, ainda em terra firme, onde a jornada começa. Um volume um pouco mais verticalizado ocupa a menor projeção possível, gesto que faz nascer uma praça pública naquele trecho, de onde já se pode interagir com o equipamento. O auditório do térreo repete o gesto de Niemeyer e tantos outros arquitetos, abrindo o fundo do palco para dialogar com o espaço público e transformá-lo, de tempos em tempos, em local de grandes espetáculos a céu aberto. A planta térrea ocupa ainda menos espaço que a projeção dos pavimentos superiores, criando também uma área aberta e coberta.
É por ali que se inicia o percurso de visitação,
em um volume permeável ao vento e com grandes pés-direitos variados que
desafiam noções pré-estabelecidas sobre estar dentro ou fora do edifício. Um
espaço de transição que absorve algumas funções da praça, com cafeteria, livraria,
auditórios e banheiros: atividades de apoio à interação social que é convidada
a retomar aquele trecho da nossa orla.
em um volume permeável ao vento e com grandes pés-direitos variados que
desafiam noções pré-estabelecidas sobre estar dentro ou fora do edifício. Um
espaço de transição que absorve algumas funções da praça, com cafeteria, livraria,
auditórios e banheiros: atividades de apoio à interação social que é convidada
a retomar aquele trecho da nossa orla.
Como quem embarca em um navio, o visitante
atravessará por uma “ponte de embarque” de vidro, caminhando sobre as águas da
baía, antes de mergulhar no volume mais fechado que o programa de um museu
demanda. Um monólito que flutua acima do molhe histórico é delicadamente
esculpido em pontos chave com diagonais que o permeiam em visadas específicas e
remetem aos grandes cascos de navio por onde os passageiros embarcam.
atravessará por uma “ponte de embarque” de vidro, caminhando sobre as águas da
baía, antes de mergulhar no volume mais fechado que o programa de um museu
demanda. Um monólito que flutua acima do molhe histórico é delicadamente
esculpido em pontos chave com diagonais que o permeiam em visadas específicas e
remetem aos grandes cascos de navio por onde os passageiros embarcam.
Por dentro desse monólito, exposições se
distribuem em diferentes patamares e mezaninos, que, para serem atravessados,
precisam levar o visitante para fora do “casco”, em um percurso que remete ao
ousado gesto do português Álvaro Siza na Fundação Iberê Camargo, em Porto
Alegre.
distribuem em diferentes patamares e mezaninos, que, para serem atravessados,
precisam levar o visitante para fora do “casco”, em um percurso que remete ao
ousado gesto do português Álvaro Siza na Fundação Iberê Camargo, em Porto
Alegre.
O projeto da equipe coordenada por Messina
emoldura a vista sobre a Baía em uma série de janelas redondas, remetendo às
vigias náuticas ao longo do corredor externo ao corpo principal. Essa
circulação conecta mezaninos, escadas e elevadores, sendo passagem obrigatória
no percurso. Dentro da nave principal, os mezaninos aparecem sem conexões
visíveis entre si, como uma série de solários em decks mais altos de um navio.
Acima de todos eles, um elemento central: uma ponte rolante que vai ajudar a
montagem das exposições e a maneira com a qual visitantes terão contato com as
peças.
emoldura a vista sobre a Baía em uma série de janelas redondas, remetendo às
vigias náuticas ao longo do corredor externo ao corpo principal. Essa
circulação conecta mezaninos, escadas e elevadores, sendo passagem obrigatória
no percurso. Dentro da nave principal, os mezaninos aparecem sem conexões
visíveis entre si, como uma série de solários em decks mais altos de um navio.
Acima de todos eles, um elemento central: uma ponte rolante que vai ajudar a
montagem das exposições e a maneira com a qual visitantes terão contato com as
peças.
Tão comum à atividade naval, a ponte cria a
possibilidade de exposições espetaculares, com embarcações suspensas, podendo
estar, inclusive, em movimento, navegando no ar, acima das pessoas. Depois
dessa experiência imersiva, o visitante é convidado a descer ao píer,
encontrando outro ambiente oposto em vários sentidos: aberto, de horizonte
longínquo, que possibilita enxergar a atividade naval com os novos conhecimentos
adquiridos e refletir sobre tudo o que viu durante a visita ao museu.
possibilidade de exposições espetaculares, com embarcações suspensas, podendo
estar, inclusive, em movimento, navegando no ar, acima das pessoas. Depois
dessa experiência imersiva, o visitante é convidado a descer ao píer,
encontrando outro ambiente oposto em vários sentidos: aberto, de horizonte
longínquo, que possibilita enxergar a atividade naval com os novos conhecimentos
adquiridos e refletir sobre tudo o que viu durante a visita ao museu.
Outra delicadeza importante é a forma como o projeto se relaciona com a dinâmica social do entorno. Além dos espaços de interação que recria nessa retomada do local pela população, ele identifica com clareza a perspectiva que os usuários terão ao se aproximar do conjunto. Quem caminhar em direção ao museu perceberá a relação com a paisagem local, emoldurada entre o volume suspenso e o molhe histórico sobre o qual “flutua”. Quando o visitante chega ao limite entre a cidade e a Baía da Guanabara, o projeto traz uma arquibancada que desce até encontrar o espelho d’água e convida o visitante a sentar e observar a paisagem que envolve o objeto edificado.
O museu vai desempenhar um importante papel nos esforços de revitalização do Centro do Rio: ele estimulará a reflexão sobre o convívio respeitoso entre edificações históricas e novas construções, evitando qualquer preconceito na recuperação da cidade e na sua adaptação às demandas contemporâneas. São esses contrastes que dão sentido ao diálogo entre diferentes tempos arquitetônicos. A revitalização precisa vir acompanhada, respeitosamente, de propostas contemporâneas que dialoguem com o patrimônio existente, sem copiá-lo ou criar um falso histórico.
O respeito à nossa história não pode deixar de fora as demandas da geração atual, sob risco de cairmos na situação absurda de propor o fim da história. Temos a responsabilidade de seguir construindo-a, para que as gerações futuras a tenham como referência. E o Museu Marítimo do Brasil, ao incorporar essa premissa, deverá se tornar um símbolo da contribuição de nosso tempo ao cenário complexo, diverso e instigante da Cidade Maravilhosa.
*Igor de Vetyemy, professor UNESA (Universidade Estácio de Sá), IED (Istituto Europeo Di Design) e UVA (Universidade Veiga de Almeida) e copresidente do IAB/RJ.