Arquitetura

Histórias e causos da Catedral de Curitiba, que completa 350 anos

Rosana Felix
04/09/2018 19:27
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Fotos: Alexandre Mazzo/Gazeta do Povo

Graças ao trabalho de um bom fotógrafo, a claridade que destaca o altar de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais é visível a todos. Para os fiéis, entretanto, a luminosidade da padroeira de Curitiba a acompanha desde sempre, antes mesmo da fundação oficial da cidade. Ao completar 350 anos, a igreja matriz sintetiza uma trajetória de lutas, obstáculos e conquistas, além do caminho a ser percorrido em momentos de crise. Não só no papel de guia espiritual, mas como patrimônio histórico da sociedade.
As celebrações para a marca histórica da Catedral de Curitiba tiveram início em 12 de agosto, com o lançamento de um selo postal personalizado. De 30 de agosto até dia 7 estão sendo realizadas missas preparatórias. No próximo 8 de setembro, dia da padroeira, entre várias festividades, haverá uma missa de abertura do ano jubilar, que vai durar até 30 de setembro de 2019, aniversário de 125 anos da instalação da Diocese de Curitiba – em alusão à posse do primeiro bispo, Dom José Camargo, e o título de catedral concedido à paróquia (1894).
Não há um registro oficial sobre a primeira construção, mas se usa a data de inauguração de 1668, quando foi levantado o pelourinho na vila, um sinal que a terra estava sob os ditames da monarquia portuguesa. Conforme os relatos da visita pastoral feita anos depois pelo então bispo de São Paulo, Dom Lino Deodato Rodrigues de Carvalho, “devemos supor que a criação da paróquia, se não é anterior à vila, é dessa mesma época, novembro de 1668”. Ao mesmo tempo em que se comemora os 350 anos da igreja, também são celebrados os 25 anos da elevação da catedral à categoria de Basílica Menor, título concedido aos templos que se destacam pela importância histórica ou pela veneração dos fiéis.
Como era comum à época, a primeira igreja de Nossa Senhora da Luz e Bom Jesus dos Pinhais se resumia a uma construção de pau a pique no estilo colonial. Ela foi edificada num ponto que teria sido indicada pelo cacique Tindiquera, da tribo Tingüi – uma estátua dele ocupa um lugar de destaque na Praça Tiradentes, conforme determinou o prefeito Rafael Greca (PMN). De forma resumida, a história e os mitos fundadores de Curitiba apontam para a instalação das famílias Soares do Valle e Rodrigues de Andrade às margens do Rio Atuba, na chamada Vilinha – localizado no que hoje é o Bairro Alto. Com ascendência portuguesa e devotos de Nossa Senhora, tinham uma imagem que amanheceu dias seguidos voltada para o Oeste. Querendo se instalar onde ela indicava, as famílias pediram auxílio ao cacique, que indicou o lugar, dizendo que havia muito pinhão, ou “Coré Etuba”, que se tornou Coritiba, em uma grafia antiga. Com o auxílio santo, os índios que ali viviam concordaram pacificamente em se retirar. Mas a data certa do edifício é uma incógnita. Pesquisas do historiador Rui Wachowicz apontam para uma edificação no centro da praça que teria sido erguida em 1658.
Foto: Alexandre Mazzo/Gazeta do Povo
Foto: Alexandre Mazzo/Gazeta do Povo
De todo modo, a edificação do jeito como a conhecemos a Catedral hoje começou a tomar forma em 1877, quando tiveram início as obras seguindo o projeto neogótico do francês Alphonse Conde de Plas. Dois anos antes, a velha edificação havia sido demolida, com a transferência da sede da matriz para a Igreja do Rosário. As obras se estenderam até 1893, com atrasos por falta de dinheiro – uma das dificuldades foi a Proclamação da República e a separação entre Estado e religião, cessando verbas antes garantidas.
O fato é que por quase 200 anos a história de Curitiba ficou intrinsecamente ligada à da Igreja de Nossa Senhora da Luz. Foi lá que, em 29 de março de 1693, o povo da vila se reuniu para a instalação da Câmara Municipal, marcando a fundação oficial da capital do Paraná. “É muito interessante que, ao conhecer a história da Catedral, se conhece também a história de Curitiba. Não só a arquitetura, mas toda a simbologia que carrega. Nos séculos 18 e 19, a edificação tinha um papel muito importante, não só para a religiosidade, mas para a sociabilidade das pessoas, considerando que o catolicismo era a religião oficial”, observa Clarissa Grassi, pesquisadora da Fundação Cultural de Curitiba (FCC).
Clarissa, aliás, tem tido papel importante em divulgar a visita guiada à Catedral Basílica, realizada uma vez por mês. No já famoso tour pelo Cemitério Municipal de Curitiba, ela tem relacionado as personalidades enterradas no São Francisco de Paula ao papel que desempenharam em algum momento na Igreja Matriz. “Não só políticos, mas havia irmandades que atuavam na igreja”, observa.

Programação

Para comemorar o Jubileu, a intenção da Catedral é ampliar o número de visitas guiadas com horário fixo e permitir o agendamento de grupos. O guia, Gabriel Forgati, conta que também haverá sessões especiais para os fiéis de outras igrejas que irão à Basílica em peregrinação. Na visita há uma sessão introdutória, para ele falar sobre a história da igreja até chegar à edificação atual. Depois há um passeio, para apreciar as pinturas e ornamentos, que passa pelas torres, pela tribuna, pelo órgão, pela cripta e pela sacristia.
Uma ação educacional da FCC também deve levar crianças e estudantes ao espaço. “A visita guiada é uma conversa sobre história, arquitetura, arte e patrimônio. A religiosidade é o pano de fundo”, diz Forgati, que também é responsável pelo arquivo da paróquia. A FCC já inaugurou em junho, a exposição fotográfica A Catedral e a Praça, que segue em longa duração no Memorial de Curitiba. Ainda estão programados concertos musicais dentro da matriz, além das apresentações fixas do coral com órgão, que ocorrem nos segundos e quartos domingos de cada mês.
Durante a visita, é possível contemplar a riqueza dos detalhes do grande restauro pelo qual a Catedral passou entre 2010 e 2012, e no qual foram aplicados cerca de R$ 5 milhões, obtidos quase que integralmente via prefeitura de Curitiba, com a venda de cotas de potencial construtivo. Segundo a arquiteta Giceli Portela, professora de patrimônio histórico da UTFPR, responsável pela reforma, foi uma grande missão: manutenção da igreja ao mesmo tempo em que foi feita atualização das instalações elétrica e hidráulica. “Tratamos de cada material deteriorado pela ação do tempo com o devido cuidado, restabelecendo sua magnitude sempre presente, melhorando seus acessos, para que todos os lugares possam ser visitados e assim, mantidos”, afirma.
Giceli, que é devota de Nossa Senhora da Luz, tem um carinho especial pela Catedral desde que se formou em arquitetura e urbanismo, em 1993. “A Catedral foi meu primeiro trabalho. Era o ano da comemoração dos 300 anos de Curitiba, e o então prefeito Rafael Greca promovia um restauro. Conheci naquela época todos os desenhos e detalhes da construção, percorrendo ainda com medo todos os espaços da igreja. Nunca mais iria me esquecer da emoção ao ver o sistema estrutural, das paredes feitas em pedra, das abóbadas em cerâmica e do cheiro da imbuia que sustenta a cobertura em folhas de cobre”, relata. Após o restauro de 2012, levou seus alunos para conhecer o espaço. “Uma obra de restauro, o patrimônio histórico é o melhor professor que um arquiteto pode ter. Desejo vida longa a este templo, de devoção, de acolhimento e de saberes, que muitas gerações possam usufruir e aprender com a Catedral”, resume.
Essa magnitude pode ser contemplada mesmo em uma visita rápida, sem a riqueza dos detalhes históricos. A Catedral está aberta diariamente, das 7h às 19h, a não ser nas segundas-feiras pela manhã, quando está fechada para limpeza. As missas ocorrem de segunda a sexta, às 12h e às 18h; aos sábados, às 12h e 15h; e aos domingos, às 8h30, 10h e 18h.

Recursos

Mas manter preservado esse rico patrimônio não tem sido tarefa fácil. A Catedral Basílica dispõe de poucos recursos para a sua grandiosidade. Sobrevive do dízimo e de doações feitas por outras igrejas. Há um fundo de conservação do arquivo, conta Forgati, mantido com o dinheiro de certidões emitidas pela igreja. Os antigos registros de nascimento, batismo e casamento são requisitados por famílias interessadas em fazer cidadania estrangeira, e para cada documento de inteiro teor são cobrados R$ 60. Quando há saldo suficiente, os livros históricos são enviados para restauro – cada um custa em torno de R$ 1,4 mil a R$ 1,6 mil. Segundo o arquivista, há cerca de 500 livros; desses, todos os 134 referentes aos batizados já foram recuperados; dos 50 de casamentos, apenas 20 foram restaurados.
Para o arcebispo Dom José Antônio Peruzzo, o Brasil tem uma boa legislação no tocante ao patrimônio público, e todos os administradores público deveriam ter cuidado especial com esse patrimônio. “É verdade que atualmente o prefeito Rafael Greca tem grande sensibilidade para esse tipo de beleza. E conhece como poucos a arte e a história da arte. Mas esperamos sim que todas as autoridades nos ajudem a cuidar do que é história porque, além de caro, um processo muito dispendioso, se descuidarmos, colocaríamos o futuro ao sabor das correntes culturais e contraculturais, as quais poderiam desfigurar o coração humano”, observa.

Símbolo

A preservação do patrimônio é, na visão de Dom Peruzzo, uma ação que toda a sociedade precisa perseguir. “Quem não sabe de onde veio, não sabe para onde vai, porque não sabe onde está. Esta é uma frase de um historiador italiano que admirei muito, o [Giovanni] Spadolini. Quem não sabe conservar o que foi capaz de fazer, não saberá o que fazer nem com aquilo que é capaz de criar. Ou seja, a história projeta sentido no presente, e quem quiser deixar-se iluminar não precisa repetir o passado. Deixar-se ensinar pelo passado é um sinal de humildade”, opina. Além disso, a edificação da Catedral Basílica é, para ele, uma “síntese dos encantos de Curitiba por Nossa Senhora”: “Há belezas lá. Há detalhes, esforços, há competências. E luminosidade”.
O religioso comenta sobre outros aspectos que tornam a Catedral Basílica tão relevante para a sociedade, especialmente na atualidade. “Em tempos de crise, é um símbolo vivo do quanto é possível ter esperança, porque, quando ela foi construída, eram muito dramáticas as crises. A luz de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais já estava aqui nos primeiros dias de Curitiba. Aquelas dificuldades iniciais de pessoas que olhavam para o futuro, sem ter qualquer domínio do mesmo, mas com muita confiança, suor, lágrimas e até sangue, continuaram. Naquelas experiências estava presente a fé, a religiosidade e a devoção mariana à Nossa Senhora da Luz dos Pinhais. Construída em tempos difíceis, é uma inspiração para que novamente em tempos difíceis possamos resgatar o que de melhor Curitiba tem para oferecer ao seu futuro. Quem a construiu, pensava no depois. Que tenhamos a grandeza de olhar para o futuro com a mesma responsabilidade daqueles que o construíram com tanto encanto”, discorre. Ele ainda acrescenta que, mais do que cuidar de uma edificação, é preciso resgatar os valores que a moldaram.

Fiéis “adotam” o templo da matriz

A Catedral Basílica de Curitiba sofre da sina comum aos templos centrais das cidades: no entorno, uma comunidade fixa que envelhece e que dá espaço a jovens em estadias passageiras, dos quais a maioria não frequenta os cultos. “As catedrais das grandes cidades sofrem com mesmos problemas. Com a comunidade mais envelhecida, a igreja vira um local de visitantes, de turistas, com um entorno que agride o patrimônio”, observa Gabriel Forgati, responsável pelo arquivo da paróquia.
Esse cenário provoca uma série de problemas. Um deles é financeiro: casamentos são uma fonte de renda importante para a maioria das igrejas, mas a procura pela paróquia tem diminuído, até pelo perfil da comunidade no entorno. Além disso, os problemas da região central, como presença de moradores de rua e casos de violência acabam afastando outras pessoas. “Não há estacionamentos próximos que fiquem abertos em vários períodos, somente na Rua 13 de Maio, e muitas pessoas já tiveram problemas em caminhar nesse trecho, especialmente sábado à noite”, lamenta Forgati.

Curiosidades da Catedral

O “famigerado” solo curitibano, com bastante argila, já provocou sustos na Igreja Matriz. Segundo pesquisa do historiador Rui Wachowicz, em 1876, as duas torres da edificação começaram a ruir. Durante uma missa. O então presidente da província, Lamenha Lins, pediu uma vistoria de engenheiros que, analisando tecnicamente, condenaram o uso do edifício. Monteiro Tourinho sugeriu a construção de uma nova, para desgosto dos fiéis, que não queriam ver ruir o local onde realizaram seus casamentos e batismos. Mas Lins seguiu a determinação e pediu autorização clerical para a construção de uma nova matriz.
ZEPELIN – O dirigível Hindenburg, da empresa alemã Luftschiffbau-Zeppelin cruzou os céus de algumas capitais brasileiras em 1936, e Curitiba foi uma delas. Uma das fotos da época mostra a aeronave entre as torres da Catedral Basílica. No ano seguinte, o dirigível explodiu em uma manobra de atracação em Nova Jersey (Estados Unidos), tragédia que resultou em mortes de dezenas de pessoas e finalizou a era dos zepelins.
VANDALISMO – Atualmente, o entorno da Catedral Basílica gera insegurança em muitas pessoas, mas os problemas com vandalismo ocorriam já em décadas passadas. Em 1.º de agosto de 1978, a Gazeta do Povo trazia entre as manchetes: “Débil mental invade Catedral e danifica estátua de Aparecida”. Em 1984, grande comoção: “Furtada a imagem de Jesus-criança” do colo de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais. A peça, esculpida em madeira 200 anos antes em Portugal, não foi recuperada. Em seu lugar foi colocada outra, de resina, uma doação de fiéis. Em março de 1990, jornais da época falavam sobre o vandalismo frequente. E, em setembro daquele ano, seis vitrais que haviam sido restaurados em 1975 foram quebrados.
PADROEIRA – A primeira imagem de Nossa Senhora da Luz a ocupar o altar da igreja matriz foi feita em terracota (barro cozido) e trazida de São Paulo. Faz parte do acervo do Museu Paranaense. A segunda imagem, também de terracota, foi feita em Portugal e entronizada em 1720. Está em exposição permanente no Museu de Arte Sacra de Curitiba, que fica ao lado da Igreja da Ordem. A terceira e atual imagem, que ocupa o trono central no Altar-mor da Catedral Basílica, foi feita em Portugal na metade do século 19, em madeira de pinho de riga. A data exata de sua chegada não é conhecida, mas há bordados com essa imagem a partir do ano de 1889.

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