Arquitetura

Este casarão cheio de história em Curitiba foi salvo por um sonho

Stephanie D’Ornelas*
12/11/2018 09:40
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Foto: Letícia Akemi/Gazeta do Povo | Leticia Akemi

“Nina, não deixe as paredes caírem”. Angela, chamada por todos de Nina, já tinha entendido o recado de seu pai, João Scandelari, mas ele continuava repetindo o alerta. Até que ela acordou. Aquilo não passara de um sonho — seu pai havia falecido semanas antes. Após sua morte, o terreno de 24 alqueires em que o imigrante italiano construiu seu casarão no Barreirinha, em Curitiba, foi dividido em lotes para seus herdeiros. Cada um iria vender a sua parte, inclusive a que comportava a casa, que seria demolida pelo novo proprietário. Mas depois do sonho, justamente na noite que antecedeu a venda, Nina tomou uma decisão: iria ficar com o lote do casarão e preservar o imóvel que representava a história de sua família na capital paranaense.
Décadas se passaram após o sonho de Nina, e o casarão da família Scandelari continua intacto na Avenida Anita Garibaldi. Do endereço mudou apenas o número ao longo do tempo: de 5054 para 5094. O imóvel, que é hoje uma unidade de interesse e preservação da cidade, foi construído por volta de 1883, data que foi encontrada gravada em uma viga do sótão. O aspecto externo permanece fiel à concepção original. De acordo com estudos de preservação realizados em 1978 pela Casa Romário Martins, da Fundação Cultural de Curitiba, o próprio João Scandelari construiu a casa com a ajuda de mais dois homens. Daquele imóvel fez o lar de sua família e fonte de renda: na entrada criou a Casa Scandelari, armazém de secos e molhados que existiu até o início da década de 1970.
Foto: Letícia Akemi/Gazeta do Povo
Foto: Letícia Akemi/Gazeta do Povo

Da doença à prosperidade

Scandelari casou-se duas vezes. Com a primeira esposa teve seis filhos — um deles, assim como a mãe, não sobreviveu à epidemia de gripe espanhola que assolou a capital paranaense em 1918. No mesmo período, o patriarca também adoeceu e acabou três meses na cama. Os filhos restantes só não ficaram à mercê da própria sorte porque duas irmãs da vizinhança, compadecidas, resolveram criá-los enquanto o pai estava convalescente. “Se não fosse por elas, as crianças não teriam sobrevivido”, relata Cleomar Scandelari, neta de João Scandelari. Uma dessas vizinhas era Maria, que se casou com João logo depois de sua recuperação. Tiveram dez filhos, além dos cinco da primeira esposa.
Mas nem só de boas novas foi o período pós-epidemia. Enquanto Scandelari recuperava-se, roubaram todos os itens de seu armazém. Além dos moradores do bairro que faziam compras ali, a mercearia abastecia as tropas do Exército em Curitiba. Sandra Scandelari, filha de Nina, conta que o Exército foi quem auxiliou o avô após a perda. “Eles haviam feito uma compra e assinaram um documento de garantia, o meu avô tinha guardado esse documento na barra de uma calça. E como ele ficou doente e não tinha quem cuidasse dele, ele ficou com essa calça durante todo o tempo. Mas ele não lembrava, e pediu para Deus ajudar ele a encontrar o comprovante. Então ele colocou a mão na perna e estava lá esse documento. Ele foi ao Exército, pagaram ele, e foi quando meu avô reergueu o armazém”, afirma Sandra.
Família preserva o documento de identificação eleitoral de João Scandelari. Foto: Acervo familiar.
Família preserva o documento de identificação eleitoral de João Scandelari. Foto: Acervo familiar.

Visitantes ilustres

Cleomar define seu nonno como “um cara gente boa”. Não negava teto para ninguém. Ela conta que ele recebia viajantes que paravam ali para pernoitar com suas carroças, carregadas com os alimentos que traziam para Curitiba. “Eles vinham de Colombo, Almirante Tamandaré, Rio Branco do Sul. A distância era muito grande naquela época. Então eles faziam uma pousada ali, dormiam em um espaço que era de terra batida, embaixo do casarão”, diz.
Entre os hóspedes de Scandelari figuram até personagens eminentes da política nacional, como o ex-presidente Getúlio Vargas, que teria repousado em sua casa por uma noite durante uma de suas passagens pelo Paraná. “Tenho um primo com o nome de Getúlio, foi uma homenagem”, afirma Cleomar. Ele não foi o único da família a receber nome de político: Flores, um dos filhos de Scandelari, foi assim batizado como tributo a José Antônio Flores da Cunha, governador do estado do Rio Grande do Sul entre 1930 e 1937, que também teria passado pelo casarão.
Foto: acervo pessoal
Foto: acervo pessoal

Casa assombrada

Gerações de crianças do Barreirinha cresceram com medo de chegar perto do casarão, que carregava consigo a fama de ser mal-assombrado. Sandra lembra que, na infância, ela e seu irmão temiam encostar nas paredes da casa da família e serem petrificados. “As pessoas ainda têm medo. A minha mãe conta que um dos meus tios disse ter visto diversas vezes a primeira esposa do meu avô no sótão da casa. Ela aparecia de branco e com o cabelo enrolado num paninho”, recorda.
O casarão continua pertencendo a sua guardiã, Nina Scandelari, mas atualmente ninguém mora no local. Depois do fechamento da Casa Scandelari não houve a instalação de nenhum outro comércio no espaço. Em 1976, a família montou ali um escritório de engenharia elétrica e hidráulica. “O imóvel funciona apenas como escritório de projetos”, diz Sandra, que coordena o empreendimento. Ela diz que nunca viu nenhuma assombração por ali. Os antepassados, entretanto, ainda vivem na casa — mas na memória preservada junto às paredes que permanecem em pé, como desejava João Scandelari.
*especial para a Gazeta do Povo

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