Arquitetura
Numa época sem calçadas, casas sem recuo delimitavam o espaço público e privado em Curitiba
Fotos: Letícia Akemi/Gazeta do Povo | Leticia Akemi
Em 1720, Rafael Pires Pardinho, conhecido como Ouvidor Pardinho, foi enviado pelo rei de Portugal para uma viagem que incluiu uma passagem na então Vila de Nossa Senhora da Luz e do Bom Jesus de Pinhais de Curitiba. Ao conhecer a pequena vila formada ao redor de onde hoje é a Praça Tiradentes, ele – que exercia o cargo de fiscalização e aplicação das leis no Brasil colonial – deixou recomendações com o objetivo de modernizar a arquitetura da cidade que começava a se formar: as construções deveriam ser alinhadas à via pública e ‘coladas’ umas às outras. “A determinação foi de preencher todas as lacunas. Na época, a ocupação integral dos espaços era símbolo de urbanidade, enquanto áreas vazias denotavam falta de desenvolvimento”, conta Fábio Domingos Batista, que é arquiteto e urbanista e autor do livro Patrimônio – A cidade como história (Grifo Editora).
O aspecto uniforme e retilíneo das construções imperou por mais de dois séculos, passando do estilo neoclássico ao ecletismo. “Uma das explicações também é o fato de que, como não existia calçada, eram as fachadas das casas que definiam a rua. É isso que vemos até hoje no Largo da Ordem, por exemplo”, observa o arquiteto e professor da UFPR, Gabriel Ruiz de Oliveira.
De volta ao tempo atual, é fácil notar essa herança arquitetônica em um passeio pelo centro histórico da cidade ou, ainda, por alguns bairros – em especial os próximos ao centro ou os que eram caminho para outras cidades. São Francisco, Alto da XV, Mercês, Rebouças e Prado do Velho são alguns dos locais que conservam casas com essa tipologia, trazendo certa nostalgia ao entorno. Fabio Batista ressalta a importância do modelo tanto para a história, quanto para o desenvolvimento da arquitetura da cidade. “Esses imóveis são representantes de um estilo que vem do século 19, persiste no começo do século 20 e até hoje exerce influência nas novas tipologias, como é o caso dos sobrados geminados”, pontua.
Os primeiros recuos
Com a chegada dos imigrantes, a partir do século 19, as edificações passaram por grandes mudanças, por causa dos diferentes estilos europeus e da vinda de técnicas mais modernas de construção. E, embora a lei ainda exigisse construções retilíneas e “parede com parede”, a crescente preocupação com a privacidade e a filosofia sanitarista – que trazia a discussão da necessidade de ventilação e iluminação para evitar doenças – foram os principais motores para o começo da quebra desse alinhamento. “A primeira casa com recuo lateral que se tem notícia é o prédio da Farmácia Stellfeld, construído em 1863, na Praça Tiradentes. Para burlar à lei e esconder o corredor lateral, o proprietário precisou construir uma falsa janela”, conta Batista.
Em 1919, uma alteração no chamado Código de Posturas fez referência pela primeira vez à construção de corredores abertos entre as edificações e ao recuo frontal para casas de madeira, começando o rompimento com o estilo. “A exigência para as casas de alvenaria, entretanto, só passou a ser feita a partir do plano urbanístico de Alfred Agache, de 1943, que começou a exigir recuo de cinco metros em determinadas regiões da cidade”, conta Oliveira.
*especial para a Gazeta do Povo