Arquitetura
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Carme Pigem: a arquiteta que cria a partir da relação com a paisagem
Catalã, Carme Pigem foi a terceira mulher a receber o Pritzker pelo trabalho realizado junto ao RCR Arquitectes. Foto: divulgação
A arquiteta Carme Pigem é natural de Olot, pequena cidade da região da Catalunha, na Espanha. Apesar de ter estudado na Escuela Técnica Superior de Arquitectura del Vallés, próxima a Barcelona, foi o município de pouco mais de 34 mil habitantes o cenário de grande parte de sua vida. E essa relação peculiar com o interior — em contraste com grandes arquitetos que habitam grandes cidades — é que dá a tônica do trabalho de Pigem.
Juntos dos arquitetos Rafael Aranda e Ramon Vilalta, Pigem fundou em 1987 o escritório RCR Arquitectes. Em 2017, o trio foi vencedor do Pritzker, maior honraria da arquitetura. Pigem se tornou, então, a terceira mulher na história a receber o prêmio.
Além da sincronia entre as mentes criativas dos três sócios, o que se nota em seu trabalho é uma arquitetura que emerge da paisagem; uma narrativa composta igualmente pela natureza e pela obra construída. E essa singularidade é válida não apenas para a região que habitam, mas para qualquer uma que seja agraciada por uma de suas obras, seja França, Bélgica ou Emirados Árabes.
Em entrevista exclusiva, Pigem contou à HAUS sobre seu conceito de criatividade compartilhada, sobre a relação entre o trabalho na arquitetura e a maternidade e sobre os conceitos que dão identidade a cada um de seus trabalhos.
Você já comparou o trabalho que desenvolve com seus colegas com o de uma banda de jazz. Como funciona o processo criativo de vocês enquanto trio? Como é a logística de criar um projeto a partir de três mentes criativas?
Como na música, é através da arte de criar e executar algo que não foi previamente escrito e que brota espontaneamente por uma série de materiais. Arquitetura é uma linguagem com regras que podem ser interpretadas de várias formas, e nisso reside a mágica de buscar em conjunto um conceito que será o principal fio do projeto. Isso é o que nós chamamos de “criatividade compartilhada”. Nós trocamos o “eu” pelo “nós”. Nesse sentido, nós discutimos os principais aspectos de cada projeto juntos.
Como o fato de morar na sua cidade natal impacta no seu trabalho? Como estar fora de uma metrópole pode impactar o resultado de um projeto?
Viver em uma cidade pequena nos dá a oportunidade de estarmos muito próximos de pedreiros, artesãos, carpinteiros, ferreiros, trabalhadores manuais e assim por diante. Trabalhamos sempre com pessoas e amostras, não apenas com esboços. E, para participar de concursos, não faz diferença onde você está — exceto pelo fato de que é muito mais agradável morar em uma cidade pequena.
Nós também estamos cercados pela natureza, que sempre foi uma grande parte da nossa arquitetura. Mas, mais importante do que isso: nós estamos longe de vários círculos de poder, e por isso temos mais liberdade aqui.
Seu trabalho é frequentemente descrito como tendo uma relação única com a paisagem. Você concorda? O que você vê na paisagem que impacta no seu processo de criação de um projeto?
Para criar um relacionamento entre o interior e o exterior, nós fazemos um estudo do terreno que nos dará as respostas do que o próprio espaço nos pede. Não pensamos nisso apenas a partir de critérios usuais — tais como orientação, contexto, topografia, entre outros —, mas também procuramos entender o que o local nos faz sentir e como aprimorar o que existe.
Revelar a potência de um espaço cria uma arquitetura única que pertence a esse lugar, estabelecendo uma forte relação entre a arquitetura e a paisagem. É esse conjunto de respostas objetivas e subjetivas que coloca alma no projeto e sentimento no trabalho. Dessa forma, o local é interpretado por chaves sensoriais que são sentidas quando o espaço é vivido. Mas também entendemos que todos sentirão a arquitetura através de seus corpos, e que cada experiência será pessoal e única.
O conjunto da sua obra é tipo como uma arquitetura hiperlocal, mas ao mesmo tempo universal. No geral, pelo mundo, vemos muitas fórmulas da arquitetura sendo repetidas em localidades com contextos diversos. Existe um segredo para a originalidade?
A arquitetura é uma profissão que ainda pode mudar a realidade criando coisas manualmente, em vez de apenas selecionar componentes prontos. Gostamos de trabalhar como alfaiates, pensando nos mínimos detalhes. Não existe um protótipo para nós. Caso contrário, tudo será produzido em massa e da mesma forma. Não estamos buscando a perfeição, estamos procurando a singularidade.
Você mencionou em uma entrevista que, no início de sua carreira, o escritório recurso uma oferta para projetar um complexo de 30 apartamentos, seguindo o conselho de um professor para recusar seu primeiro grande cliente. Por que se deve fazer isso? E, indo além: como você vê o dilema de projetar para países, governos ou empresas menos democráticos? Você acha que isso é uma barreira ética?
Eu lembro que, quando ainda éramos estudantes, um professor nos disse: "Para ser um bom arquiteto, quando chega o que aparenta ser um grande projeto, você deve dizer não". E foi exatamente o que aconteceu quando nos ofereceram o projeto de um prédio residencial de 30 apartamentos. Para nós, foi um grande negócio. Mas dissemos não, e acabou sendo um bom conselho.
Decidimos participar de concursos por um tempo e fizemos um projeto para o Farol de Punta Aldea em Gran Canaria no mesmo ano, em 1988, e vencemos! Foi uma interpretação muito inesperada de um farol como um edifício horizontal que se fundia com o litoral. Portanto, com a perspectiva do tempo, talvez tenhamos recusado o projeto residencial porque realmente queríamos fazer algo muito especial. Esse foi nosso ponto de partida. Desde então, muitos de nossos projetos passaram por concursos. Gostamos disso porque nos dá liberdade.
Com relação ao dilema de projetar para países, governos ou empresas menos democráticos, não tivemos que enfrentar essa situação. Nossos clientes têm sido principalmente privados ou públicos. Mas acredito que, nesse caso, procederíamos como o professor nos disse e recusaríamos a oferta. E claro, seria sim uma barreira ética.
Ao longo de sua vida profissional, você encontrou alguma dificuldade por ser mulher?
Em nosso estúdio, 70% da equipe é formada por mulheres. Nós promovemos e apoiamos a presença de mulheres em nossos projetos. Também verificamos que no RCR Summer Workshop, que realizamos há 12 anos, pelo menos 50% dos participantes são mulheres. São fatos coerentes com o crescente número de mulheres que escolhem a carreira arquitetônica.
Obviamente, ainda há muito que se fazer, especialmente na relação entre profissão e maternidade. Eu mesma tenho a sorte de poder trabalhar como arquiteta e ser mãe. Isso foi possível porque meus parceiros apoiaram isso como algo natural.
Por outro lado, considero que haverá cada vez mais mulheres que não vão desaparecer atrás da sombra de seus parceiros. Uma opção para alcançar esse equilíbrio pode ser pensar em termos de compartilhamento de autoria e processo criativo, como nós temos feito através do conceito de criatividade compartilhada.
Você é uma das únicas três mulheres já premiadas com um Prêmio Pritzker. O que significa para você estar entre Zaha Hadid e Kazuyo Sejima? O que esse simbolismo significa para você? [O prêmio de 2020, concedido às irlandesas Yvonne Farrell e Shelley McNamara, foi divulgado após esta entrevista ter sido concedida.]
Eu me sinto muito honrada por compartilhar com Zaha Hadid e Kazuyo Sejima uma das três medalhas do Prêmio Pritzker concedidas a mulheres. Com Kazuyo Sejima, eu até tive a chance de compartilhar momentos juntas e de ter uma abordagem pessoal, dizendo o quanto a admiro em toda a sua personalidade.
De acordo com o que eu disse antes sobre as arquitetas, me sinto orgulhosa de ser a primeira mulher com um prêmio Pritzker que também teve a oportunidade de ser mãe. Sinto que esta é uma mensagem importante para as gerações mais jovens.
Quais são suas principais referências em arquitetura?
Quando começamos, tentamos confiar no que aprendemos na escola e aprender com algumas práticas locais, como o Studio Per de Barcelona, liderado por Oscar Tusquets Blanca, Lluis Clotet, Cristian Cirici e Pep Bonet. Mas o que causou um profundo impacto em nossa maneira de entender a arquitetura foi uma viagem ao Japão no início dos anos 90, na qual visitamos sua arquitetura tradicional e descobrimos essa relação fluente entre interior e exterior, arquitetura e paisagem.
Em uma viagem à América entre 1994 e 1995, procuramos entender o que é uma obra-prima ao visitar os últimos [Frank Lloyd] Wright, Mies [van der Rohe] e [Louis] Kahn. Mas também somos influenciados pela arquitetura árabe aqui na Espanha, como com a Alhambra, que apela aos nossos sentidos. Portanto, estamos abertos a absorver influências diferentes, sendo curiosos como desde a escola fomos ensinados a ser. É por isso que continuamos pesquisando e discutindo, que é a chave da nossa prática.
Você diria que também é inspirada por outras artes ou áreas de conhecimento?
A arte sempre nos inspirou porque envolve os mesmos temas que composição, espaço, materiais e beleza, mas sem restrições - sem orçamento, sem gravidade, sem contexto. No entanto, gostamos dessas restrições e sempre as expressamos.
Acreditamos na importância da transversalidade. Um laboratório dessa abordagem é o nosso RCR Summer Workshop, onde estudantes e profissionais de todo o mundo se reúnem por três semanas em Olot para trabalhar em projetos de arquitetura e paisagem, audiovisual e fotografia, cenografia e dança. Esta experiência é enriquecida por conferências sobre arte, arquitetura, filosofia, artes visuais, cinema e ciências ambientais. Recentemente, também temos oferecido, ao longo de todo o ano, oficinas em que ensinamos a sentir a paisagem. Elas acontecem em La Vila, nosso novo espaço, próximo a Olot, para nos comunicar com a natureza.
Um dos principais problemas que a arquitetura enfrenta atualmente - tanto no Brasil como na Espanha - é o pouco acesso que pessoas de baixa renda possuem à boa arquitetura. Qual você acredita que seja o caminho para tentar solucionar essa questão?
Na França, desenvolvemos modelos residenciais interessantes para rendas mistas. Pensamos que uma questão importante não é criar guetos para os ricos e os pobres.
Recentemente também contribuímos para um projeto habitacional para vítimas de um terremoto no México. Estúdios mexicanos reconhecidos e escritórios internacionais foram convidados a projetar casas. Os resultados mostram que uma boa arquitetura pode ser feita com um orçamento muito pequeno.
A arquitetura ainda tem desafios sociais para responder. Você pode dignificar a vida humana, dando abrigo e beleza ao mesmo tempo. A beleza é uma necessidade universal.
Você tem planos de projetar no Brasil?
O tempo dirá se um dia vamos desenvolver um projeto no Brasil. Nunca se sabe…
Você tem um sonho que gostaria de realizar enquanto arquiteta?
Continue trabalhando para melhorar os espaços de convivência para as pessoas, de forma que a vibração da borboleta aqui possa se tornar um furacão em outra parte do mundo… E que a vida e o mundo se tornem melhores para todos.